O povo não é uma abstração
A crise política que bate bumbo não comove as massas. O que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, o do estômago.
Ele se faz presente em todos os espaços do território: corre para pegar o ônibus das 5, aboleta-se nos trens da periferia, aplaude e xinga nos estádios, gruda defronte às vitrines para ver o futebol, devora churrascos gregos nas calçadas ou volta, com o sol poente, dos campos e das roças para a solidão de suas casas. O povo é a realidade de milhões de brasileiros à margem do processo de consumo, dando um duro danado, levantando prédios, construindo máquinas, moldando a anatomia do País.
Em nome do povo, desvios se fazem na cena institucional. Exemplos: a reforma da Previdência deixou de ser aprovada por congressistas que enxergaram retirada de direitos do trabalhador. Ora, é o contrário. Mais adiante, o aposentado poderá ficar sem seus proventos. O MP e o Judiciário tomam decisões de olho nas ruas. Mesmo que o casuísmo quebre a letra constitucional. Procuradores e juízes parecem imperadores romanos decidindo sob o polegar da massa aprovando seus atos. O equilíbrio entre os Poderes desmorona.
Mas a verdadeira crise do nosso povo é a falta de casas, de comida, de emprego, de hospitais, de segurança, tema central. Por isso, a crise política que bate bumbo não comove as massas. Elas agem por impulso e o primeiro que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, o do estômago. O imbróglio dos escândalos é um caldo que as massas vêem de longe e é mais entendido pelas elites. Eis a questão.
A engenharia política nacional é responsabilidade das vanguardas econômicas e políticas. A cooptação e a conquista do voto exprimem um pensamento de cima. Ao povo carente falta cidadania. Sua autonomia de decisão é escassa e tênues são suas vontades. Assim submete-se à demagogia dos discursos que sugam suas emoções. Mesmo sob a desconfiança em salvadores da pátria.
Quando se abre a portinha do lamaçal, desvenda-se a identidade cultural da política. Há uma pequena rua, em Londres, cheia de lojinhas, que vendem os mesmos tecidos, dos mesmos padrões e pelo mesmo preço. Nem um centavo a mais ou a menos. Um brasileiro tentou pechinchar. Surpreendeu-se: o dono de uma das lojinhas recusou-se a vender o tecido. Ele vira o brasileiro sair de outra loja. Apontou: a sua loja é aquela. Aqui cultivamos a honestidade. Estamos anos luz distantes desse sonho.
Muitas figuras comandam o processo político há tempos. Não há horizontes limpos. Velhos cenários e poucos atores desconhecidos. A peça até pode ser diferente, mas o fio condutor da trama é o mesmo na luta pelo poder. O populismo aparece como arma de mistificação das massas e denúncias sobre uns e outros até podem gerar alto índice de abstenção, votos nulos e brancos. Mas a tão proclamada renovação política terá de esperar. Não é para este ano.
P. S. A morte da vereadora Marielle Franco adensa o fluxo do povo nas ruas, com forte impacto sobre a campanha eleitoral.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato