Teve um tempo em que acreditei na Justiça. Ou melhor, nas justiças, na dos homens e na divina. Parecia-me razoável que cada pecado cometido fosse devidamente punido. Que cada desobediência implicasse algum castigo. Claro que isso me custou muito sofrimento. Aquele dia em que me isolei no quarto alegando necessidade de estudar e fiquei jogando botão (quem nem botão era, mas plásticos rijos que cobriam relógios de pulso) a tarde toda, e no dia seguinte me saí muito mal na prova de latim… O outro em que briguei com um colega de escola, rolei com ele na terra aos socos e pontapés, entrei quietinho em casa, me lavei, joguei a camisa rasgada e encardida no cesto de roupa suja e fui almoçar sem contar nada aos meus pais (desta vez não tive muita sorte, o olho roxo e as escoriações no joelho me traíram miseravelmente). Os castigos me pareceram razoáveis: uma semana passa depressa, embora eu adorasse jogar bolinha de gude com a turma da Vila Gagliardi, rua sem saída, nosso empoeirado parque e praça esportiva improvisada.
A vida, à época, fazia sentido: a cada pecado, uma punição. Uma das coisas que eu fazia, esporadicamente, era dar uns sopapos no meu irmão “do meio” (éramos três meninos) sempre que ele, sob qualquer pretexto, agredia o caçula. Quando eu me entusiasmava nos sopapos e o chorão abria o berreiro, o cinto do meu pai fazia o papel de juiz, entrava na contenda e meu traseiro ganhava algumas faixas avermelhadas. Meu pai averiguava, julgava e aplicava o castigo, sem delongas. Já o castigo divino… Desse eu tinha mais medo, mas devo reconhecer, por outro lado, e à distância, que era bem menos eficiente. Eu me lembro até hoje da vez que fiquei um tempão tentando espiar uma freguesa, quando ela provava blusas na loja do meu pai. A moça ficou muito tempo experimentando cores, modelos e tamanhos diferentes, enquanto eu, nos meus heroicos nove anos, rondava a porta do provador improvisado. Um pirralho como eu certamente não representava ameaça alguma ao pudor dela…
Mesmo assim, e mesmo não tendo tido nenhum sucesso na minha precoce atividade de voyeur, eu sabia que havia pecado. Talvez o sexto mandamento, ou outro qualquer, mas alguma lei de Deus. Esperei conformado o castigo, ficando em troca apenas com o azul-claro do enorme sutiã que vislumbrara. Mas o castigo nunca veio. Bem diferente de um colega de colégio, que ao confessar ao padre a prática da masturbação, foi aconselhado a se autopunir para ficar limpo. O resultado da queimadura que J.B. provocou em si próprio o acompanhou até sua morte precoce.
Já adulto me dei conta de que a Justiça tem cor, sexo e leva em conta fatores que, anteriormente, nunca imaginei que pudessem influenciar na decisão de quem julga. Algumas pessoas são julgadas logo, outras nunca. Alguns têm ótimos defensores em todas as numerosas instâncias, outros mal conseguem defensores razoáveis e se dão mal por erros técnicos, esquecimento de prazos legais para apresentar a defesa, má vontade dos cartórios e até dos próprios juízes. A lei, embora nominalmente coloque todos os cidadãos no mesmo patamar de direitos e obrigações, é muito mais generosa com uma parte da população, os que têm poder. Um complexo e lento sistema de defesa composto de numerosas etapas tem a função de protelar qualquer julgamento definitivo e respectiva punição. Recursos infindáveis, muito bem apresentados por equipes afiadas, lideradas por advogados muito hábeis, fazem com que o medo de punição não atemorize criminosos conhecidos. E, se algum juiz do andar de baixo comete a “irresponsabilidade” de sugerir prisão a um figurão, corre o risco de cair em desgraça. Não importa o que diz a constituição sobre igualdade de direitos. Temos uma cultura estabelecida e ai de quem ousar questioná-la.
Uma amiga, promotora em São Paulo, me disse uma vez que a justiça de classe no Brasil nunca permitiria que tivéssemos um verdadeiro país de cidadãos. Ela tinha razão. Olhamos os iguais, ou supostos iguais, de modo distinto do que fazemos com pessoas “diferentes”, seja por sua origem social, cor da pele, religião, grau de instrução, tipo de roupa que usam. Isso é uma flagrante violação à letra e ao espírito da Constituição Brasileira, à democracia e à cidadania. Deixar o tempo passar para que os crimes prescrevam, colocar ricos em prisão domiciliar, mesmo quando cometeram crimes horríveis, enquanto abandonamos dezenas de milhares de pobres presos sem julgamento, é comum por aqui.
Aos iguais tudo, aos demais a força da lei.
Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto