Os Estados Unidos vivem o maior conflito racial desde o assassinato de Martin Luther King em 1968. Vinte e um estados adotaram o toque de recolher e as manifestações se espalharam por 140 cidades, entre elas grandes centros urbanos como Nova York, Washington, Chicago, Boston e Filadélfia. Pelas ruas soam as últimas palavras de George Floyd: “eu não consigo respirar”. O joelho de um policial de Minneapolis asfixiou Floyd até a morte e sufocou a América com o esgarçamento de uma chaga que vem dos tempos da escravidão.
A divulgação de um vídeo de quase nove minutos mostrando a cena de horror de um policial assassinando mais um negro deixou exposto o racismo estrutural, muitas vezes encoberto pelas sombras da indiferença. A crônica desigualdade racial tornou-se mais dramática com a pandemia. Os negros são as maiores vítimas da Covid 19, assim como são os mais afetados pelo desemprego dantesco.
George Floyd foi mais uma vítima da violência policial. A mesma violência que em 2015 motivou do movimento “black lives matter”, após o assassinato por policiais de um jovem negro de 25 anos. Entre os dois episódios há grandes diferenças.
Há cinco anos os Estados Unidos era presidido pela primeira vez por um negro, Barack Obama. Isso diz muito.
Hoje é presidido por Donald Trump, em ano eleitoral, vestido da armadura da “lei e da ordem” e ameaçando colocar o exército nas ruas para conter os distúrbios. O discurso durão de Trump volta-se para a “América profunda”, o eleitorado da classe média branca dos grotões americanos. Sua postura de jogar mais gasolina na fogueira é contestada até por membros do seu partido.
As manifestações ocorrem como se fossem dois rios paralelos.
De dia, acontecem de forma pacífica, multitudinária e multirracial. Nessa América generosa, policiais e manifestantes se ajoelham e se abraçam, num gesto de comunhão pela mesma dor e pela mesma causa.
O ato de se ajoelhar não é para pedir perdão. É um ato de protesto contra o racismo desde 2016. Naquele ano, no início de um jogo, Collins Kaerpernick, então quarterback e ídolo do San Francisco 49ers, ficou de joelhos quando o hino nacional foi entoado. O estádio estava repleto de torcedores e a emoção foi arrebatadora.
De noite tudo muda de figura. Pequenos grupos de ativistas – brancos e negros – saqueiam o comércio, depredam patrimônio público e privado. É uma minoria, mas sua forma selvagem de luta cria um clima de terror e espanta o americano médio, compromete o caráter massivo das manifestações e dá força ao discurso eleitoreiro de Trump.
A questão do racismo estrutural invadiu a agenda da disputa presidencial americana. A ela os atores respondem de forma diferente.
Em desvantagem nas pesquisas eleitorais em decorrência de seus erros no combate à pandemia e à escalada do desemprego, Donald Trump vê no uso do big stick a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Os supremacistas brancos são seus eleitores, razão pela qual adota uma postura negacionista da questão racial. Joga suas fichas na abstenção do eleitorado negro, a exemplo do que aconteceu nas eleições de 2016.
Já lideranças democratas como Barack Obama, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, a prefeita de Washington, Muriel Bowser, e o candidato Joe Biden separam o joio do trigo. Têm apoiado as manifestações pacíficas e condenado os saques e a violência de grupos minoritários.
Os democratas governam estados e cidades estratégicas, daí sua responsabilidade em reprimir o vandalismo e não ter postura radical. Não podem, contudo, ser omissos diante de uma causa justa. O grande desafio é convencer o eleitorado negro a fazer do voto o instrumento para derrotar o racismo estrutural na disputa presidencial.
O sentimento da mudança pelo voto encontra ressonância nos ativistas e manifestantes da causa antirracista. Superando sua dor, Terence Floyd foi até o local da morte do irmão para dizer: “não parem de protestar, mas levantem um símbolo da paz”. Terence mandou um recado cristalino para o eleitorado negro: “Votem, se eduquem para votar”.
Se bem canalizada, a jornada de 2020 pode fazer a diferença para uma América menos desigual, assim como aconteceu nos anos 60. Os direitos dos negros sempre conquistaram corações e mentes quando se inseriram na causa mais ampla dos direitos civis. O inverso também é verdadeiro, quando ficaram confinados em guetos identitários se isolaram.
O exemplo a ser seguido neste momento não é o fundamentalismo de Malcon X ou o radicalismo dos Panteras Negras. Mas sim a altivez de Rosa Park, o pacifismo de Martin Luther King e a determinação da marcha de Selma.
Hubert Alquéres é membro da Câmara Brasileira do Livro, da Academia Paulista de Educação e conselheiro na Associação Museu Afro Brasil. Escreve às 4as feiras no Blog do Noblat.