Cada coisa em seu lugar, ou cada macaco no seu galho. As expressões aconselham que cada pessoa deve exercer o que é de sua competência, sem se intrometer no que desconhece. E devem servir nesses tempos em que o Covid-19 foi puxado das salas da medicina para o palanque político. A pergunta é inevitável: permanecesse no campo da ciência, esse vírus teria matado tanta gente? Caso os governantes tivessem adotado as recomendações de especialistas, teria ele infectado mais de 12 milhões de pessoas (dados desta 5ª feira) e matado até agora cerca de 600 mil pessoas?
Em nossas plagas, se o presidente Jair Bolsonaro não fosse a principal alavanca dessa politização, e se governadores e prefeitos tivessem adotado medidas necessárias desde o início, concentraria o Brasil 14% dos diagnósticos do planeta, com 1,7 milhão de infectados e mais de 70 mil mortes? O bom senso apontaria para quantidade bem menor. Donde se conclui: a falta de respeito à ciência por parte dos governantes tem sido responsável pelo aumento da mortandade. Daí também a ideia de que estaria havendo um genocídio.
O fato é que a doença foi politizada e dirigentes tentam tirar proveito da situação. Indicam drogas rejeitadas pela ciência, se vestem de salvadores do povo e puxam a fé das massas para o balcão das oportunidades. Receitar a tal da hidroxicloroquina (com graves danos colaterais) e o vermífugo ivermectina não é um ato de insanidade e irresponsabilidade?
As massas tendem a imitar seus líderes. Se o presidente da República toma tal droga, por que não fazer o mesmo? Milhares assim pensam. Pior ainda é deduzir que muita gente poderá morrer pelos efeitos deletérios do remédio. Por isso, a orientação sobre prevenção, higiene, quarentena e reabertura cuidadosa das atividades comerciais devem seguir o rigor das autoridades sanitárias. Até surgir a vacina, tudo é especulação.
Não há outra conclusão para tanta demagogia: alguns compram milhões de comprimidos para dar às populações. Numa importante cidade do Sul, o prefeito distribui ivermectina pela cidade. Como não há efeitos colaterais, o programa é bem aceito, mas os médicos ironizam: “esses placebos pré-eleitorais, gotinhas de cânfora homeopática em vidrinho (em março passado) e vermífugos têm efeito zero. Só temos uma certeza: quem morrer por aqui – seja do que for – morrerá sem sarna, piolho ou vermes.”
Infelizmente, a politização da pandemia continuará animando as alas bolsonaristas e adversários. Interessa aos extremos. Mas já se constata que o copo das querelas começa a transbordar. Só mesmo os 15% dos fiéis radicais do bolsonarismo e um índice menor da extrema esquerda se interessam pelo tiroteio. Felizmente, o Facebook está excluindo cerca de 80 contas de seu espaço, acusadas de manipulação por integrantes do tal “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. Uma companhia do porte do Facebook não faria isso sem provas. Daí a crença no arrefecimento da polarização. Ademais, contingentes das classes médias, como o grupo de profissionais liberais, já estão saturados da radicalização. Só não enxergam essa tendência cegos da mente. A conferir.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político