É repetitivo lembrar que a extinção do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) marcou o início de um ciclo de espionagem pulverizada em dezenas, e depois centenas, de empresas com fachada tecnológica, destinadas à captação e comercialização de informações obtidas à base de grampo. Desde então, o país convive com uma grampolândia.
Egressos do SNI, ou gente oriunda daqueles tempos, passaram à iniciativa privada, oferecendo serviços de “varredura” que, na verdade, se prestaram à espionagem política. Foi ali pelos tempos do governo Collor quando a tecnologia de escuta e filmagem alcançou um grau de sofisticação capaz de obter gravações de conversas captadas a distâncias inimagináveis até então.
A espionagem política é coisa da antiga. Produziu estórias e histórias, lendas e verdades. Em campanhas eleitorais, a vigilância sempre foi regra. Qualquer descuido pode fornecer munição moral ou penal entre adversários, suficiente para impor derrotas a candidatos com dianteira aparentemente irreversível.
O cofre de Ondina
Não faltam exemplos. Ainda à época do regime militar atribuía-se ao então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, o poder do conhecimento dos porões de seus desafetos. Resumia-se tal poder com a expressão “o cofre de Ondina”, referência a um lendário cofre no palácio de governo estadual com dossiês pecaminosos.
Em abril de 2002, uma busca da Polícia Federal no escritório da empresa Lunus, no Maranhão, tirou da campanha presidencial Roseana Sarney, àquela altura um azarão na corrida ao Planalto. O que ficou conhecido como o caso Lunus, resultou na apreensão de R$ 1,34 milhão em espécie, valor não declarado de campanha.
Para o ex-presidente Sarney, a operação tem origem no PSDB, o que o levou a romper com os tucanos e aliar-se ao PT, cujo governo passou a apoiar. Não se sabe se o ex-presidente mantém essa convicção, dado que eliminar Roseana era também conveniente ao PT, como hoje interessado na polarização, que a candidata ameaçava.
Os “aloprados”
Tais memórias estão longe de mostrar a dimensão da espionagem política no país, repleta de lendas e verdades. Ela tomou forma também nos anos do PT, quando o aparelhamento do Estado serviu para a produção de dossiês com origem no funcionalismo militante que o então presidente Lula convenientemente atribuiu a “aloprados” fora do controle do partido.
Nada disso é louvável, mas é a realidade forjada por um modo de fazer política explorando seu lado sombrio instalado nas vidas de candidatos e partidos. Operando a chantagem para alcançar a vitória sórdida.
Coisa bem diferente, e mais grave, é o governo patrocinar, com estruturas oficiais bancadas a dinheiro público, a espionagem de adversários consolidados ou potenciais, como se toma conhecimento agora na gestão do ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública.
Não à toa, a Polícia Federal manifesta preocupação com o fato. Os serviços de inteligência oficiais estão fragmentados nas esferas federal, estadual e municipal. Da Abin às estruturas de segurança estaduais há diversos serviços de inteligência que não cultivam a sinergia de suas informações, alimentam mútua desconfiança e direcionam suas investigações.
O Estado particular
Quando o presidente Jair Bolsonaro se queixou desses serviços na célebre reunião ministerial de 22 de abril, mal comparou-os com o seu próprio serviço de inteligência, pessoal, dizendo que este, sim, funcionava.
Pois parece que decidiu fazer com que os demais melhorassem, o que se traduz, no caso, por servi-lo plena e eficientemente, por meio do ministério da Justiça e Segurança Pública, uma vez removida a resistência oferecida pelo ex-ministro Sérgio Moro. Fez o seu próprio SNI.
Mas a julgar pelo acervo que a Lava Jato recusa compartilhar com a Procuradoria Geral da República, a quem deve subordinação, a oposição de Moro é uma mera luta pela hegemonia de arquivos e segredos.
A força-tarefa dispõe de 350 terabytes com dados e informações de 38 mil pessoas, o que equivale a um arquivo oito vezes maior que o do Ministério Público Federal, com 40 terabytes. Como o critério de escolha dessas 38 mil pessoas também é secreto, nada desautoriza a desconfiança de que possam ser usados discricionariamente.
Tal engrenagem não estimula otimismos. O país ainda conviverá por muito tempo, quem sabe para sempre, com esses registros extra-oficiais de seus cidadãos.
João Bosco Rabello. Jornalista há 40 anos, iniciou sua carreira no extinto Diário de Notícias (RJ), em 1974. Em 1977, transferiu-se para Brasília. Entre 1984 e 1988, foi repórter e coordenador de Política de O Globo, e, em 1989, repórter especial do Jornal do Brasil. Participou de coberturas históricas, como a eleição e morte de Tancredo Neves e a Assembleia Nacional Constituinte. De 1990 a 2013 dirigiu a sucursal de O Estado de S. Paulo, em Brasília. Recentemente, foi assessor especial de comunicação nos ministérios da Defesa e da Segurança Pública.