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O primeiro blog brasileiro com notícias e comentários diários sobre o que acontece na política. No ar desde 2004. Por Ricardo Noblat. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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5G: a humanidade num chip (por Paulo Delgado)

E o Brasil?

Por Paulo Delgado
Atualizado em 18 nov 2020, 19h56 - Publicado em 28 set 2020, 12h00

Ninguém se liberta de um hábito sem fazê-lo descer a escada, degrau por degrau. (Mark Twain)

O atraso político na oferta de internet é erro econômico irreparável  

Todos sabem que diante da revolução tecnológica o futuro ficou fora do horizonte do presente. O que não significa que estamos diante da encruzilhada ou de um dilema entre escolher telégrafo ou celular, bússola ou web rotas, QR Code ou carimbo.

Não se trata de amaldiçoar o progresso e o avanço veloz e vertiginoso das telecomunicações. Trata-se de também se interessar em como encaixar as pessoas como sujeitos do desenvolvimento global. Não vejo nenhuma vantagem em ser moderno se você perder o livre arbítrio, a sensibilidade e o rosto humano. Ou supor que a imprevisibilidade da vida chegou ao fim.

Nem é correto imaginar que semicondutores integrados na miniatura de um circuito eletrônico, chip, vão mudar o caráter das pessoas. Ou que em troca da alta taxa de transmissão e da velocidade instantânea da comunicação, seja compensador aceitar tudo, sem conhecer o que se passa.  Mas quem quiser ser usado, ou ficar para trás dentro do pior cenário, empreste sua conformidade a este atraso que tem sido no Brasil a condução política das decisões sobre o leilão da quinta geração de tecnologia móvel – o 5G.

O futuro da economia está em jogo e continuamos perdendo tempo com a política.  As peças da cena do futuro estão em outro quebra-cabeça que combina pesquisa-desenvolvimento-comércio-liberdade-justiça-inovação. Não é o jogo inapto do presente, próprio do reiterado controle desinformado da política que praticamos, responsável pelo atraso histórico do Brasil que levou à desindustrialização e a impossibilidade de termos o controle autônomo em computação, tecnologia e inteligência.

Há um mundo de cenários e possibilidades imediatas em tecnologia incompatíveis com o entendimento negligente, fraqueza doutrinária e brutal desinformação estratégica do governo para a questão. Até a esperança é possível um dia reparar, mas o atraso tecnológico para oferta de internet hoje é uma perda irreparável para uma sociedade. Por isso, tratar de forma subalterna o interesse nacional no leilão do 5G compromete o orgulho e o espírito de uma nação independente.

Todas as pessoas e instituições são vulneráveis na sua privacidade diante da cibernética.  Mas o que ocorre hoje como crime – mesmo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já em vigor – com a entrada desordenada e manipulada pelo governo do leilão das frequências de rede 5G – ocorrerá como impunidade e insegurança.  Poderemos ter uma inundação incontrolável de violação de dados, cobertura deficiente, um dilúvio de ações judiciais e transgressão da segurança e ética das comunicações.  Uma espoliação legal do auto interesse dos brasileiros.

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A oferta potencial brasileira de serviços relacionados ao setor é uma das maiores do mundo e tem impacto econômico direto sobre os próximos 30 anos. Por exemplo, alguns cenários de forte impacto: todo o setor de Pesquisa & Desenvolvimento; ferramentas  convergentes para a indústria 4.0 ( cibernética total em fábricas inteligentes: internet das coisas/computação em nuvem/big data/robôs colaborativos); Cidades Inteligentes; aumento de produtividade e eficiência para os negócios; combate a vulnerabilidade da defesa nacional por ataques cibernéticos; aumento da convergência tecnológica mundial; viabilizar de forma econômica a alta taxa de transmissão de dados; teletrabalho; consultas populares instantâneas; internet táctil com controle remoto confiável de respostas rápidas possibilitando cirurgias à distância e telemedicina; integração de equipamentos domésticos; cobertura universal rural e urbana segura, barata e de qualidade.

Inovações devem ser avaliadas pelo que falta para a perfeição

Invenções, inovações, devem ser vistas com lupa, como se olha um diamante. Devem ser classificados pelo que lhes falta para a perfeição, pois diamante perfeito é composto só de luz.  Meu papel neste artigo é o de um certificador autonomeado que busca sombras, não do formato ou da lapidação científica que está por trás de tal avanço, pois não teria condições para isso. Mas dos milhares de pontos obscuros presentes nas facetas dessa pedra brilhante, para tentar apontar em que escala está a falta de clareza de muitos dos seus ângulos. Quem sabe, assim podemos chegar, para o bem dos perdedores, ao quilate das imperfeições dessa gema da inteligência artificial, o 5G, a quinta geração de internet móvel.

Meu ponto de vista é o do lugar-comum onde a maioria vive. Os deserdados do catecismo político, que são os usuários contumazes dos produtos consumidos por costume e que autorizam serem informados das novidades 10 vezes por dia.  O usuário-massa, aquele que tudo que recebe transmite, seduzido por etiqueta, estereótipo e moda, clientes preferenciais para o assédio danoso de spams e vírus, ou mesmo da curiosidade e oferta amigável de wifi cookies.

Os usuários contumazes da mídia com suas interações descuidadas costumam ser as maiores vítimas da internet sombria, maré baixa da inteligência, banalidades virtuais diversas e da concentração da riqueza em telecomunicação. E, como muitos usam as novidades de boa-fé, atraídos pela suposição de que o acesso é grátis, fortalecem o aparente paradoxo que é se beneficiar da ideia de que uma parte do ganho líquido da riqueza da sociedade tem que ser dado aos perdedores.

Universalizar o uso de internet é, pois, uma forma de ressarcir os consumidores do mundo virtual, os viciados em internet, e ajudar os fora de moda, os ainda sem internet, a enfrentar a desigualdade de oportunidades em tecnologia e viabilizar o alcance e mobilidade social da inteligência artificial.

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Ninguém se dá conta,mas o controle, armazenamento e uso de informações que a tecnologia digital vem possibilitando tem sido a maior expropriação dos dados da vida privada de todos os cidadãos em toda a história da humanidade. Mais do que nos períodos de escravidão, da Grécia até o Brasil imperial, onde a tecnologia era desprezada porque a opressão do trabalho era considerada suficiente para armazenar todas as informações e produzir toda a riqueza.

Existem Vales do Silício onde a Fábrica derrota a Bolsa

A globalização espalhou a inteligência tecnológica para várias regiões e hoje nem a expertise nem todas as empresas globais do setor de telecomunicações estão nos EUA. Somente cinco empresas no mundo – duas europeias, a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia, duas chinesas da mesma cidade de Shenzhen, Zte e Huawei e uma sul-coreana, Samsung – controlam integralmente as plataformas de software/hardware desse sistema de comunicação sem fio e o estão comercializando desde 2015.

Com saudades da AT&T e da Motorola o governo Trump começou a sabotar os chineses comercialmente os atacando politicamente. Ardilosamente usa a linguagem política de “inimigos” e não concorrentes. A verdade é a disputa acirrada por mercado rival embrulhada na ideologia hostil da bipolaridade.

Se as mercadorias não puderem atravessar fronteiras, os exércitos irão. O antigo alerta de Frédéric Bastiat certamente serviu para dar boas-vindas à globalização, quebrar monopólios e estimular a integração entre os povos pela produção e consumo descentralizado das mercadorias.  E ao expandir as cadeias gerais de valor e as alianças comerciais, a nova economia gerada criou outros polos de produção e reequilibrou o poder mundial, impedindo a desenvoltura dos senhores da guerra, sempre atentos ao surgimento de conflitos.

Com a antiglobalização pregada por Trump, negando a história liberal e antitruste que levou o capitalismo norte americano ao topo do mundo, os nacionalismos retrógados, protecionistas, ensaiam em voltar.  Blocos político-econômicos antagônicos serão formados pela lógica mercantilista, as organizações multilaterais enfraquecidas, boicote a fornecedores e consumidores serão regra. Um mundo desnecessário se torna outra vez possível pela estupidez de governantes.

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Quando os EUA acordaram para a acorrida tecnológica pela implementação mundial da internet móvel, os asiáticos e os europeus, que ainda gostam de fábrica, operário e riqueza sólida de longo prazo, já haviam ultrapassado os norte-americanos, que gostam de bolsa, especulador e o curto prazo do novo rico. O alvo virou a Ásia onde a China também já tem duas das maiores empresas de telecomunicações do mundo, com 590 milhões de usuários em sua base e já é o maior vendedor de smartphones do planeta, superando a Samsung e a Apple.

Se a Anatel se submeter ao descontrole e à “proteção” de Trump, para agradar ao desconectado governo brasileiro atual, correremos o risco de nos tornar uma nação declinante e colher o pior. Estamos nos candidatando a ser presa potencial e fácil de paralisia cibernética estratégica que pode tirar o Brasil do ar como ocorreu com a Estônia em boicote causado pela Rússia.

Nações não têm amigos, têm interesses. Lembro aqui a descompostura que Churchill passou em Chamberlain, chanceler da Inglaterra, por ter assinado o Tratado de Munique confiando na boa vontade de italianos e alemães: “entre a desonra e a guerra, escolhestes a desonra, e terás a guerra”.  Ao considerar Trump um super-herói amigo e Xi Jinping um monstro inimigo o Brasil se oferece à desonra e ao atraso.

Todos os softwares são vulneráveis

Entre nós Tim, Oi, Claro e Vivo, dependem muito da Huawei na transição para o 5G. A China é o maior importador e investidor no Brasil hoje. Se o país tiver que mudar, por razões de segurança dos EUA impostas para poder compartilhar informações de inteligência, melhor renunciar a um assento na ONU como país independente. E os consumidores e empresas prejudicadas não conseguirão se adaptar ao novo dono. E ainda terão que decidir se contratam advogados de defesa junto ao Estado Livre Associado de Porto Rico e ao Protetorado Familiar de Bento Ribeiro.

Com as enormes exigências que vão da regulação, oferta, armazenamento, operação de satélites e compartilhamento de informações à instalação de milhares de antenas pelo país e fluxo de bilhões de dados é fácil perceber que conciliar a posição brasileira com instruções políticas de governo estrangeiro só é possível em regime colonial.

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Enquanto o governo decide se é melhor mandar ou obedecer a busca por uma rede mundial sem problemas de conectividade e em velocidades maiores já colocou em vigor a internet das coisas. Com todos os seus riscos que é aumentar a superfície de contato para a ação humana remota.

Ampliam-se as possibilidades do uso hostil da inteligência artificial e a maravilha que é a internet táctil ficar mais conhecida por ser usada como arma inesperada e incontrolável. A weaponization, neologismo inglês que ainda não está no dicionário já é realidade.

Sem códigos de controle do seu uso, cultura compartilhada de responsabilidade e protocolos compreensíveis, a modernidade que vem aí é uma escada de novos hábitos que não dá mais para subir degrau por degrau. A interferência política externa na decisão é uma sabotagem ao livre acesso da melhor tecnologia. Um freio no progresso, o velho hábito do Brasil não merecer o Brasil.   O governo está nos fazendo perder o fococomo nação gigantesca que somos e pode ampliar as formas negativas do uso da internet pelas empresas de comunicação, pelo Estado e a Sociedade.

A inteligência artificial pode nos levar a aceitar naturalmente influência nas interações familiares, na soberania nacional, na livre escolha de aparelhos e redes pelos cidadãos, nas formas de trabalho, aumentando a onda de oferta do lixo digital com repercussões sociais, militares, psicológicas e econômicas. E, especialmente agravada quando a liberdade é direcionada para mecanismos de controle cuja essência definirá o acesso ao mercado. É uma brutal regressão nos costumes políticos deixar o governo decidir qual a melhor rede móvel para Estados nos monitorarem.

Não é possível negligenciar, todavia, que vivemos sob um estado de ameaça constante de links, vídeos, robôs, explosões de conectividade em três dimensões, celulares, downloads, veículos autônomos, caças supersônicos, drones de guerra, armas cibernéticas, etc. Atente ao significado: tudo estará dentro da ética dos negócios computacionais e não dos aspectos de segurança e defesa ou de valores humanos.

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E como a super conexão exige uma infraestrutura de apoio, coleta e armazenagem, tal rede subsidiária passa, também, a ter acesso às informações que por ela circulam.E sua hora de dormir, o endereço do seu escritório, em que estrada ou avião você está, o que gosta de comer, ler ou assistir pertence também ao provedor da rede. Sem falar de segredos diplomáticos, câmeras de vigilância, iluminação pública, pousos e decolagens, cartas náuticas e propriedade intelectual. Todos os softwares são tecnológica, comercial e politicamente vulneráveis. Não há garantia de 100% de eficácia na proteção pessoal ou das nações.

Vale lembrar que o aumento da superfície de contato para a ação humana intencional amplia a possibilidade de uso da inteligência artificial como comando de aparelhos que podem ser usados como arma. Ou seja, podemos ter a hostilidade como rotina e o desprezível como destino. O 5G pode ser o ninho sombrio da interatividade. Kafka puro e na veia.

Se o deslumbramento com a quinta geração da internet móvel e seus derivados continuar como está – intimidando um Estado subjugado, frouxo ou autoritário; uma economia libertina querendo ser chamada de liberal – vejo um futuro onde tudo é permitido, nada é respeitado e ninguém é importante.Aliás como ocorre no Brasil onde tudo é permitido, mas nada tem valor.

No celular a pessoa é um sinal, torre de transmissão

O impacto das novas tecnologias e o uso de computadores, celulares e redes sociais na vida privada e na geopolítica mundial produziu, para além das ideologias, uma glorificação da internet. Não tanto pela sua comodidade, mas antes pela sua debilidade de princípios.Desmoraliza completamente o pessimismo de T.S. Eliot quando dizia que estava convicto de que a raça humana não suportava muito a realidade. A humanidade não sonha mais, está atolada na realidade.

Hoje, os especialistas em inteligência artificial, Big Data, 5G e cibersegurança andam humilhando consultores, acadêmicos, psicanalistas e comitês de ética. A facilidade de usar, a gratuidade relativa, o caráter espetacular da invenção tem sido um entrave para entender o ataque à privacidade e aos padrões civilizatórios que brotam da internet. Do whatsapp ao streaming é o fluxo de gula que prevalece, o empanturramento do fato afirma-se sobre a escolha do sabor, o saber, a ética do paladar. As pessoas não falam mais do que pensam, de expectativas e sonhos, falam do que viram e ouviram agora. Está ficando árduo conversar sabendo que o que você está ouvindo é um ventríloquo do celular.  Apóstolos de aplicativos diante de seus milhares de seguidores. Não é assim tão fácil ver sabedoria no uso de toda tecnologia.

O problema da disponibilidade de tudo ao alcance da mão e dos sentidos é a falsificação da vida já que todos engolem o que é servido, mesmo sem querer. Criadas desse jeito crianças e jovens nunca terão interesse em expandir as perspectivas pois o futuro são conexões do aqui e o agora. O problema é que para ser uma pessoa livre é preciso controlar as conexões, não deixar a comunicação de massa envenenar sua emoção.

Há uma decomposição humana em curso criando uma fragilidade identitária nas pessoas e as fazendo perder o interesse por seus vínculos. O mundo vive uma preguiça diante das próprias ideias e características sociais. Tal entrega, este entusiasmo morno pela própria vida, facilita a aceitação de fórmulas, sua classificação por gosto, comportamento, opinião e oferece uma fragilidade moral que está se popularizando e que é a do tipo previsível-clichê-intrigante-revoltado-libertino. Uma pessoa o dia inteiro no celular é uma pessoa fora de si.Sua vida é um sinal, uma torretransmissão.

Uma explosão de liberdade e negócios sombrios

As comunicações em rede se transformaram em uma estigmatização cujo foco principal é o jovem capturado frequentemente por uma mitologia da liberdade. Conectar é atacar valores e assediar em linguagem doce ou rude – buscar um desertor do covil conservador da família é a frase do lobo – e o transformar em filho de pais perplexos.  Quando a criança ou adolescente aceita a mordida da rede e passa para o lado do imponderável, a escuridão se anuncia.

A internet expõe sua licenciosidade quando se dedica, sem autorização, a formar “minorias” capturáveis por algoritmos. Enfeitiçou o mundo, plagiou os problemas da vida eaumentou a dose de agressividade e superficialidade da linguagem – uma espécie de imbecilêz, as 225 palavras necessárias o homem falar com o chipanzé.  E impôs o absurdo em que todos estão aculturados e nela amarrados através de algum aplicativo.

Mesmo assim a internet não tem o papel de destinar o homem ao sucesso ou ao fracasso. Ela apenas registra na sua memória a conduta como negócio que quantifica e descreve. Não nasceu como uma rede de registros orais. É uma escrita e muito fácil de enganar. E quem se deixar enganar por registro de busca será alvo fácil de vídeos, filmes, montagens.

O WWW – World Wilde Web – essa teia de redes interligadas mundialmente, tornou-se o lugar preferido da maior expressão desse novo espírito da nossa época. Ao contrário do que pretendiam seus idealizadores quando a libertaram do mundo militar, hoje podemos dizer que o espírito predominante que a habita é um tipo sem ideais civilizatórios, um exército mercenário, capaz de manipular o ser humano como material mítico e comercial e favorecendo sua adaptação e aceitação da realidade.

Uma rede fechada que se torna aberta e vai aos poucos voltando ao autoritarismo fechado de sua origem. Com a explosão de dados gerados por dispositivos interconectados – megatrends – o aumento de produtos criados em 3D e robôs, ecossistema de dados abertos, automação de processos com funções cognitivas e disrupção em série, moedas virtuais, hackers e delinquência sem limites, etc podemos dizer que a sombra que a internet projeta já é maior do que a luz.

Os modelos econômicos do Google, Apple, Facebook, Watts App, Instagran, Tik Tok, Baidu e o e.commerce da Amazon e Alibaba, estão baseados na vigilância privada de desejos rastreadas por cookies. Além de escritórios de Política Científica e Tecnológica capturando dados pessoais, de data centers e todas as instituições ou parcerias conectadas à internet. E o pior dos mundos é existirem Estados nacionais governados por párias conspirando contra a civilização mundial.

Imensa possibilidade de agradar, imenso poder de corromper

Ninguém deve se sentir seguro diante do que nasce da internet porque sua imensa possibilidade de agradar significa também imenso poder de corromper. A maravilha de um clique venceu a estabilidade da verdade. Não é o mouse, o dedo, o olho ou a voz que dão instruções ao aparelho. Quem aciona a busca é o desejo. Por isso nunca haverá norma canônica, universalmente aceita, para disciplinar seu uso.

Escritórios comerciais sentiram a explosão e se especializaram em processar, analisar, armazenar e vender esses dados. O “sistema”, responsável tantas vezes pelas desconexões oportunistas que nos atormentam no dia a dia, passa a ser senhor de toda a sociedade que poderá ser espionada, ou desligada, por motivos os mais diversos.

Em regime de monopólio nacional, como parece caminhar a decisão mundial, sem controle social e sem o desmembramento dos gigantes da área, podemos nos despedir da vida em liberdade e da economia da livre iniciativa. O que está havendo no mundo é uma militarização camuflada das comunicações. A tecnologia é um leão que ri na tela do smartphone, sincronizado à distância pela lei da selva, e disponível na mão como gato doméstico.

Sempre houve uma competição política e ideológica dominando o campo técnico e a revolução tecnológica.  Mas nunca houve uma iniciativa realmente forte e multilateral para definir o padrão de comportamento pessoal e coletivo no ciberespaço da internet. Diante disso é possível dizer que o Brasil pisou no freio na curva errada e pode capotar de vez.

O leilão das faixas de frequência para a quinta geração de telecomunicação móvel (5G) previsto para ocorrer em março de 2020 poderia cumprir um papel modernizador, mas foi adiado indefinidamente por pressão dos EUA em controversa decisão da Anatel, tomada em dezembro de 2019 e até hoje sem solução.

Ignorando questões estratégicas próprias e as vinculando aos interesses de um outro país podemos dizer que o Brasil não é um país afortunado. E quando não há nenhum espaço para uma nação se defender do erro dos governantes podemos sentir o que é não ter ninguém em casa sonhando por nossa felicidade.

De forma direta, o adiamento representa um atraso mortal imposto ao Brasil com relação a outros países do mundo nesta que é a infraestrutura de negócios com maior potencial de expansão e lucro para as décadas de 2020 e 2030. Os bilionários brasileiros continuarão os mesmos. Não haverá necessidade de nova edição da revista Forbes na próxima década. O país não se eleva, se agacha.

Sem espaço na aristocracia do espírito entre as nações

O Japão já testa o 5G desde 2014 e tem uma muito bem traçada estratégia desde 2016. A Coreia do Sul, com seu forte planejamento central em apoio a suas empresas nacionais exportadoras de tecnologia (como Samsung e LG), tem a maior difusão de 5G no presente momento. Ainda que os usuários pessoas físicas coreanos não estejam positivamente impressionados com o serviço, as empresas do país estão surfando na frente na produção de aplicativos e outras tecnologias associadas.

A China, que já é o maior mercado do planeta; a União Europeia, que é o segundo; e os EUA, que ressentem a terceira posição: todos têm o 5G em operação e avançando.

Até poucos anos atrás, enquanto a globalização e as cadeias globais de valor eram defendidas a ferro e fogo pelos EUA, o detalhe de que o 5G era uma obra majoritariamente Asiática e Europeia não era tão importante assim.

Na circunstância atual passou a ser assunto de segurança nacional. Com o Departamento de Estado, que é o Ministério das Relações Exteriores dos EUA, promovendo um esforço de boicote sem precedentes contra a atuação de empresas chinesas líderes do setor. A decisão da Anatel de frear o leilão como uma resposta a essa pressão já não é um mistério mal ocultoO silencio do Congresso um sintoma de indiferença. A despreocupação das Forças Armadas com a perda da neutralidade brasileira e a invasão da soberania má escolha hemisférica.  O desdém da sociedade e das instituições econômicas uma consequência de causas antigas.  Está formado o círculo das criaturas imóveis que definem nosso destino como nação.

Até aqui, a argumentação americana para convencer outros países contém muita embromação, pouca sinceridade cooperativa e duas realidades objetivas. Uma é de que tomadores de decisão nos EUA acham que prejudicar as empresas chinesas é uma forma de revidar e conter o fato amplamente documentado de que a China pratica espionagem corporativa em larguíssima escala. Algo facilitado pelas novas tecnologias de informação e comunicação criadas a partir da internet e levadas a um novo patamar com o 5G.

Outra é a de que o mundo da telecomunicação móvel, daqui pra frente, é um dos riscos cada vez mais altos e mesmo maiores incertezas relacionadas à segurança cibernética. Tanto em relação a privacidade de dados quanto a riscos físicos.

A privacidade é uma anomalia que nasceu com as cidades

Sobre onde está e para onde vai a privacidade de dados, o conceito do vice-presidente da Google, Vinton Cerf, é o que está se impondoCerf acumula o curioso cargo de Evangelista-Chefe da Internet para a empresa e acredita que privacidade foi uma “anomalia” social circunscrita às grandes áreas urbanas dos séculos 19 e 20.Algo como se preparasse uma jurisprudência moral para acabar com qualquer vestígio da liberdade individual.

O 5G pode ser o fim do alicerce filosófico que deu ao ser humano seu mais profundo ideal que é o de poder ser livre. Bem, esse homem original poderá ser estudado em cátedras de “arqueologia da privacidade” nas universidades inúteis do futuro.  Por outro lado, dentro da indústriahá quem aposte que a briga por privacidade e direito de propriedade sobre os próprios dados vai se expandir cada vez mais, como admite o presidente da Microsoft, Brad Smith.

Quanto aos riscos físicos, eles aumentam porque o 5G estará na automação das indústrias, do agronegócio, da infraestrutura que rege o funcionamento das cidades, na vigilância policial, nos armamentos. Em suma, tem maus sonhos de ubiquidade e de sobreviver a governos.

Após perceber que era fraca a lógica de simplesmente pedir por aí que países proíbam a participação chinesa, um ramo do governo americano passou a incentivar a criação de um 5G de código abertoEstratégia liderada por Lisa Porter, do Departamento de Defesa, faz mais sentido em termos de parceria de desenvolvimento do que o que o Departamento de Estado vinha propondo até então.

Um leilão não arrecadatório.

Com o leilão em suspenso, o Brasil deve cuidar de aprimorar sua estratégia para o 5G. Deve solicitar à China a implantação aqui de um Centro de Avaliação de Segurança Cibernética da Huawei nos moldes do que existe no Reino Unido. O governo brasileiro deve também se debruçar no acordo da Huawei com a Índia, bombardeado pelos EUA, para saber o mínimo que deve almejar. E definir um modelo de leilão de espectro que privilegie a área de cobertura e não a arrecadação financeira, como propõe o Instituto Nacional de TelecomunicaçõesSegundo o Inatel o segredo do 5G é a ubiquidade visto como o princípio capaz de alcançar a democratização de acesso e isto somente será possível com a universalização da área de cobertura.

Cobrindo todo o país poderemos diminuir a desigualdade social no seu uso. Retirar o elitismo da tecnologia pelo uso massificado como ferramenta de trabalho disponível a todos, com imediatas repercussões no preço dos serviços e na produtividade rural e urbana. Sem descuidar da atenção permanente à filosofia humanitária que deve orientar o progresso tecnológico.

Com relação aos EUA, sugiro ao governo que toda vez que uma autoridade brasileira receber pedidos para restringir a participação chinesa no 5G brasileiro, deve retornar pedindo que empresas, universidades e pesquisadores brasileiros – civis e militares – participem a sério do atual esforço estadunidense, liderado pelo Pentágono, de se construir uma alternativa de código aberto de 5G. Se os EUA tiverem uma compreensão de América não puramente nacionalista, mas regional, não-violenta e cooperativa, é possível trabalhar junto.

A árvore que não verga quebra, mas um país não é uma árvore. Em que medida o recuo da Anatel é a de um escravo das circunstâncias continuará um mistério por mais tempo.

Como o tempo não protege os atrasados termino com uma premonição mundial e uma dúvida local: passados os estranhamentos de curto prazo, o mais provável é que EUA e China estejam nas próximas décadas mais ricos e em paz um com o outro. E o Brasil, como estará?

 

Paulo Delgado escreve no Capital Político. É professor, sociólogo e consultor de empresas. Foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal por Minas Gerais de 1986 a 2011. Articulista regular d’O Estado de São Paulo e assina a coluna de politica internacional dos Jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas. É colaborador do Capital Político. ⠀⠀⠀

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