Novas peças do quebra-cabeça chinês: morcegos e mais dúvidas
O Instituto de Virologia de Wuhan colaborou com as forças armadas e também manteve animais vivos, segundo as indicações mais recentes
Como em toda história de detetives, o importante é manter a mente livre de ideias pré-concebidas. E rastrear cada pedacinho de informação que ajude a montar o quadro geral.
Por enquanto, é possível dizer que o consenso científico continua a se inclinar pela origem zoonótica do novo coronavírus, confirmando a versão chinesa de que o patógeno passou de morcegos para um animal, hipoteticamente um tipo de tatu chamado pangolim, consumido como iguaria, e desse para os primeiros portadores humanos que tiveram contato com ele num mercado de Wuhan, propagando-se a partir daí entre nós.
Mas o consenso está sendo abalado por novas informações. Muitas delas estão saindo do relatório feito em janeiro pelo Departamento de Estado sobre as origens da Covid-19. Segundo a rede ABC, um trecho do relatório indica que “no passado, o laboratório colaborou em projetos com as forças armadas da China que foram mantidos em segredo”.
Um ex-funcionário do Departamento de Estado também disse que o governo americano tinha conhecimento do fluxo financeiro de origem militar que financiava as pesquisas até agora secretas.
“Como posso oferecer evidências para uma coisa que não tem evidências? Eu não sei como o mundo chegou a esse ponto, de espalhar lixo sobre uma cientista inocente”, protestou ao New York Times a doutora Shi Zhengli, a “mulher-morcego” que apareceu como heroína das pesquisas sobre vírus exóticos e agora combate suspeitas de que sabe muito mais do que dá a entender.
A ABC também entrou em contato com todos os 27 cientistas que assinaram a já famosa – ou infame – carta publicada pela revista médica Lancet, desprezando a hipótese de que o vírus tivesse saído do laboratório de Wuhan. “Vários” signatários, segundo a emissora, disseram que não têm mais tanta certeza. Um declarou que mudou de opinião e agora acha mais provável que o vírus tenha saído do instituto.
É possível concluir que o vírus que já matou 3,8 milhões de pessoas no mundo tenha se originado de um erro humano? Absolutamente não.
Mas a maré está mudando, inclusive porque grandes veículos americanos entraram na história com todo seu poder de investigação. Antes, mantinham a atitude pouco jornalística de atribuir qualquer suspeita sobre o envolvimento do laboratório na propagação do vírus a simpatias por Donald Trump.
Muitos aspectos dessa investigação envolvem vasculhar informações que já estavam em domínio público, mas não pareciam relevantes. Numa dessas viagens ao passado, o canal Sky News da Nova Zelândia levantou a existência de um vídeo datado de quatro anos atrás mostrando morcegos vivos numa gaiola no laboratório de Wuhan.
O vídeo é importante porque o zoólogo Peter Daszak, britânico que atua nos Estados Unidos e talvez seja o maior conhecedor, num país ocidental, do que acontecia no instituto de Wuhan, havia negado categoricamente a existência de morcegos no laboratório.
“Nenhum morcego jamais foi enviado ao laboratório de Wuhan para análise genética de vírus coletados em campo. Não é assim que a ciência funciona. Nós colhemos as amostras e mandamos para o laboratório. Soltamos os morcegos dos quais elas são colhidas”, escreveu Daszak, que foi intermediário de verbas para pesquisa concedidas pelos National Institutes of Health ao laboratório chinês.
Daszak também foi o autor da carta dos cientistas na Lancet e integrou a missão da Organização Mundial de Saúde que deveria investigar a origem do vírus na China, mas teve atuação controladíssima, limitando-se a ouvir explanações de cientistas chineses.
Além de considerar “extremamente improvável” que o vírus tivesse origem em laboratório, o relatório final da OMS também dizia que era “um erro” imaginar que o instituto de Wuhan mantivesse morcegos vivos.
Detalhe: o vídeo dos morcegos na jaula foi mostrado pela Academia Chinesa de Ciências em maio de 2017. Um pesquisador aparece nele alimentando um morcego com uma larva na ponta de uma pinça.
“A hipótese de um acidente de laboratório é extremamente improvável para explicar a introdução do vírus na população humana”, reiterou, diante das novas dúvidas, o chefe da missão da OMS, o dinamarquês Peter Ben Embarek.
A propagação zoonótica seria comprovada se fosse localizado o portador intermediário, o animal silvestre que recebeu o vírus de um morcego e o transmitiu a um humano – um processo que não é tão simples quanto parece. Nada foi encontrado até hoje.
A trama fica cada vez mais interessante.