Na hora do sufoco, todo mundo se enrola na bandeira, fecha as fronteiras e cuida dos seus. A formidável crise em dose dupla, de saúde e escassez de material de proteção, e de dinheiro, visto o tamanho avassalador do rombo criado por economias congeladas, provocou inversões curiosas.
Quem disse: “Não vamos mais importar matérias-primas do outro lado do mundo porque vamos produzir em nossas regiões, porque a tecnologia digital vai permitir produzir quantidades menores mais depressa graças à impressão em 3D, porque vamos ajudar nossas empresas a investir na transição para esse modelo ecológico”? O europeísta, globalista e ex-funcionário do banco Rothschild — equivalente, para os oposicionistas, a uma prova irrefutável de ser vendilhão da pátria — Emmanuel Macron. O mesmo que, depois de descobrir, quando o vírus explodiu, que a França tinha um estoque de 140 milhões de máscaras, em comparação a 1 bilhão de uma década antes, fez uma promessa de “nunca mais” ao estilo de Scarlett O’Hara, a personagem principal de E o Vento Levou: “O dia seguinte não será como os dias anteriores. Precisamos reconstruir nossa soberania nacional e europeia”. Essa última, uma barretada de valor simbólico, considerando-se que a União Europeia empalideceu durante a crise e fez de conta que não viu as fronteiras nacionais se fechando furiosamente para isolar cada povo no seu quadrado. Marine Le Pen, abominada como uma perigosa nacionalista, não diria melhor que Macron.
“As inúmeras previsões sobre o fim do Estado-nação revelaram-se algo precipitadas”
Quem prometeu gastar 400 bilhões de dólares nas compras de bens e serviços pelo governo, em benefício das empresas nacionais? E mais 300 bilhões em pesquisa e desenvolvimento? O desbragado nativista, autocrata e antiquado Donald Trump, com seu slogan furado “Make America great again”? Errado de novo: foi Joe Biden, o candidato democrata na eleição presidencial de novembro, que desenterrou a proposta do Buy American. “Ele me plagiou”, reclamou Trump, com certa dose de razão.
Enfrentando uma queda prevista de 14% no PIB neste miserável ano, o governo britânico age como se tivesse encontrado a árvore mágica que dá dinheiro. Só para comparar o tamanho do buraco: em 1946, no território devastado do pós-guerra, os EUA emprestaram 3,75 bilhões de dólares (uns 60 bilhões de dólares em valores atualizados) para salvar os arruinados aliados britânicos. Quem negociou o empréstimo pela parte inglesa foi ninguém menos que John Maynard Keynes. É no formidável defensor do uso temporário das políticas fiscal e monetária para impulsionar a demanda durante as crises que se inspirou Boris Johnson. Sem pensar no amanhã, ele prometeu um pacotaço de obras públicas ao estilo rooseveltiano. Atenção: o governo é nominalmente conservador.
As inúmeras previsões sobre o fim do Estado-nação, que levaria junto conceitos desprezados como nacionalismo e patriotismo, revelaram-se algo precipitadas. Talvez num prazo mais longo, quando o trauma da crise do coronavírus esteja esmaecido, elas venham a se realizar. Embora, como disse Keynes na sua frase mais citada, às vezes sem que o autor seja associado a ela, “a longo prazo, estamos todos mortos”.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696