Milton Hatoum: os dias eram – e são – assim
Ambientado na Brasília dos anos de chumbo, A Noite da Espera, primeiro tomo de O Lugar mais Sombrio, novo romance do amazonense, ecoa os dias atuais
Doze anos depois do premiado Cinzas do Norte e nove após a novela Órfãos do Eldorado, o amazonense Milton Hatoum volta à forma longa do romance com uma história dividida em três partes. A Noite da Espera, que sai agora pela Companhia das Letras, é a primeira de um extenso romance de formação iniciado em Brasília, nos anos de chumbo da ditadura. As outras duas, ambientadas em São Paulo e em Paris, são previstas para 2018 e 2019 e, embora já escritas, ainda devem ser retrabalhadas pelo escritor. “É bom porque assim tenho algo com que me ocupar. No Brasil, esse país em que o sistema político está em degradação, se você não encontrar algum prazer nas coisas… Eu me sinto um privilegiado”, diz, evocando o clima que permeia o livro e que permite paralelos com os dias de hoje. “Uma infeliz coincidência.”
Confira, também por partes, abaixo a entrevista de Milton Hatoum:
1. O BRASIL DE ONTEM E DE HOJE
Nos agradecimentos de A Noite da Espera, primeiro dos três volumes do romance O Lugar Mais Sombrio, o senhor diz que o livro resultou de uma “ideia talvez involuntária” do seu editor, Luiz Schwarcz. Foi uma espécie de encomenda? Eu escrevi isso porque devo os dois primeiros volumes do romance ao Luiz. Eu comecei pelo terceiro. Entre 2007 e 2011, escrevi a história de uma mulher, uma narradora franco-brasileira, uma que remonta a 1980, quando eu morava na Espanha e ensaiei uma autobiografia que depois foi abandonada. Quando ele leu, acho que foi o único a ler o manuscrito, fez observações e perguntas sobre a vida do Martim. O protagonista de A Noite da Espera já aparecia ali, embora a narradora do terceiro volume seja mais importante para outro personagem do que para ele. Então, eu percebi que devia narrar a vida do Martim e do grupo dele.
É um romance de formação e de desilusão. Foi um sonho que foi enterrado, a gente acabou de viver isso
É possível traçar paralelos entre o cenário político de A Noite da Espera e o de hoje. Houve uma revisão recente no texto para aproximar passado e presente? Não. Eu estava apreensivo para entrar nesse universo da participação da minha geração na política porque é um tema complexo e eu não queria escrever um romance estritamente político. O livro traz a vida do Martim, a subjetividade dele, que está meio perdido. A namorada é envolvida com a política estudantil, ele não. Ele tem um drama que é a separação da mãe, aos 15, 16 anos. Eu pensei mais nisso, e na busca pelo sentido da vida, que é típica dos jovens, ou ao menos foi. Havia um movimento de liberdade sexual, contracultura. Os jovens estavam dispostos a tudo. Eles desejavam romper convenções sociais e familiares. Essa era a ideia de Maio de 1968. Havia um sonho. Brasília foi esse sonho realizado. Só que foi interrompido, cruel e brutalmente. Alguns jovens quebraram padrões, outros se enquadraram, caso das Vanas e Fabius, personagens do livro. É uma pesquisa de vidas, no fundo, de vida de uma pequena parte da minha geração. Porque muita gente da minha geração não estava preocupada com a ditadura. É um romance de formação e de desilusão. É sobre um sonho que foi enterrado, a gente acabou de viver isso.
Você também morou em Brasília e fez arquitetura em São Paulo, como o Martim. Quanto da sua experiência pessoal entrou na história? É claro que todo livro é um pouco autobiográfico. E esse é mais que os outros, porque é sobre um tempo que vivi, uma escola que eu frequentei, uma cidade onde morei. Eu saí de casa aos 15 anos, deixei meus pais e me mudei para Brasília, porque queria estudar arquitetura, Manaus ainda não tinha o curso naquela época. Queria sair da província, queria sair do útero, queria me libertar. E fui detido pela polícia, como o Martim, passei um dia e uma noite preso. No meu caso, por participar de uma passeata. Não apanhei, mas fui ameaçado e, na prisão, ouvi muitos gritos de tortura. Foi um momento também de descobertas. Havia o desejo de liberdade de um lado e a repressão do outro. É esse conflito que marca essa geração. Mas é claro que tem a minha experiência aí. A experiência é fundamental na literatura, embora, no romance, a imaginação deva prevalecer sobre a sua vida, de longe. É a essência da experiência que estimula a imaginação. O sentimento mais profundo daquilo que você viveu. É isso que importa, muito mais do que o fato em si.
Martim é seu alter-ego? O Martim tem pouco a ver comigo. Acho que eu sou uma mistura do Martim, o menino que namora uma militante estudantil e é mais ligado às artes, e do Nortista, que é o peregrino do Nietzsche, aquele que não vende a alma ao estável, como disse Antonio Candido, o aventureiro que se arrisca e que paga o preço por isso. E ainda da Ângela, com todo aquele misticismo dela. Tem uma coisa esotérica forte em Brasília, e eu gosto de magia, gosto da poesia sufi, estou longe de ser um materialista. Também vivi a geração mimeógrafo, a gente fazia poemas e textos e distribuía, e tive as minhas viagens místicas, os meus fumos (risos). Hoje todo mundo nega: nega a militância, nega que fumou. As pessoas agora são anjos. Até o Fernando Henrique deu umas pitadas.
Fernando Henrique disse que nunca fumou. E o Bill Clinton, que fumou, mas não tragou. (Ri alto) A gente está vivendo uma hipocrisia, o reinado de um moralismo assustador. Os evangélicos… No segundo volume do romance, tem um capítulo a respeito. Quando fui repórter, cobri o primeiro grande encontro evangélico da Universal no Pacaembu. Foi uma loucura. Eu trabalhava com o Nirlando Beirão, que leu aquilo e perguntou, “Isso não é ficção? Você não está inventando? Se isso for verdade, nós estamos perdidos”. E eu disse a ele, “Nós estamos perdidos”. É só ver hoje a política, o Congresso.
O que eu não consegui viver eu imaginei
No primeiro volume do romance, A Noite da Espera, um professor fica indignado quando um aluno lê O Anticristo, de Nietzsche, e acusa o texto de ser uma afronta às famílias cristãs. A cena parece muito atual. Eu não tinha essa percepção. Eu escrevi há tantos anos, mas às vezes a ficção evoca o passado e o passado repercute no presente. Foi uma coincidência, talvez infeliz, eu não queria que o Brasil passasse por isso, ver algumas coisas voltando, e como farsa, como diria o Marx. Esse Congresso é uma farsa.
O crescimento do deputado Jair Bolsonaro o assusta? Bastante. É o lado mais obscuro e fascista da direita brasileira. E me assusta o Doria, que já falou em união com Bolsonaro no segundo turno e que todo dia comete um erro. Ele é um deslumbrado, está cego pela possibilidade de ser presidente e fazendo uma aposta muito arriscada, que é a do autoritarismo e do moralismo hipócrita. A mulher dele é uma artista.
Por que, na sua opinião, a arte é um dos setores mais atacados atualmente? Querem tolher nossa liberdade. Porque a liberdade da imaginação, dos nossos gestos e da nossa linguagem é uma ameaça para eles, para os autoritários. É esse o conflito profundo do Brasil.
2. LITERATURA, GÊNERO E MÉTODO
Seu último romance, Cinzas do Norte, é de 2005. Depois, você lançou uma novela, Órfãos do Eldorado, um livro de contos, Cidade Ilhada, e uma reunião de crônicas, Um Solitário à Espreita. Por que voltou agora ao romance? A classificação entre novela ou romance é uma convenção. Para o leitor, é uma diferença sutil. Vale mais para o leitor mais exigente ou especializado. Para o leitor comum, novela é um romance curto. Há uma definição clássica da novela do teórico húngaro Lukács, que acha que a novela é o gênero mais difícil. Ele dá como característica da novela o recorte de uma vida e a intensidade dessa vida. A novela não é uma narrativa com muitos personagens, geralmente. Ela se concentra na vida de um, dois ou três. E por isso tem essa intensidade que se aproxima do conto. O romance, não. Ele pede e até exige digressões. A novela não tem para onde correr. Ela segue o ritmo intenso da trama e do drama interior do personagem. Um caso de novela bastante ilustrativo para mim é Ivan Ilitch, do Tolstói. Essa é uma grande novela. São oitenta páginas. Mas acho que não poderia ser considerada um conto porque, no conto, a concentração é maior ainda. A concisão é maior. Mas há contos longos, por isso é uma convenção e é difícil separar os gêneros. Depois do romantismo, essas fronteiras são muito fluidas.
O senhor tem pendor por um gênero mais do que por outro? Eu comecei escrevendo romance. No Brasil, a maioria dos escritores da minha geração começou escrevendo contos. Eu achei que tinha um pouco de assunto para desenvolver e comecei já com romance, em 1989. O gênero depende também do que você quer narrar. Às vezes, você pensa num conto, mas esse texto cresce, cresce, cresce e não faz mais sentido em cinqüenta páginas, porque tem muitas subtramas e relações, muita coisa desenvolvida. Há clássicos que começaram assim. O Grande Sertão, no início, era uma novela, um texto mais curto. O Lord Jim, do Conrad, era um conto.
Não é aquele autor que sofre para escrever? Não, não… Acho que tem mitos. Tem escritores que querem criar uma aura sacralizada, que não faz mais nenhum sentido. Essa coisa de que os personagens ganham vida própria: meu personagem faz o que eu quiser que ele faça, ele dobra à direita se eu mandar. Eu tenho uma concep��ão do personagem, faço um esboço e depois ele vai se desenvolvendo enquanto escrevo a história.
O que vem primeiro, o personagem, a história ou o título? O título desse romance e o de O Relato de um Certo Oriente surgiram no fim. O de Cinzas do Norte e de Órfãos do Eldorado, no meio. Dois Irmãos foi o Luiz Schwarcz quem deu, eu não gostava de nada que eu havia escolhido. O mais importante para mim é armar a estrutura narrativa na minha cabeça, o modo de narrar a história. Se eu não encontrar isso, eu não encontro o livro que eu quero escrever. Esse deu trabalho, eu pensei muito. Eu não poderia escrever um romance em terceira pessoa. Quando eu pensei que a única opção seria através de fragmentos de anotações, cartas e diários, então encontrei a estrutura. Ainda faço gráficos antes de escrever em papel manteiga, um hábito de arquiteto. Escrevo a fórmula escolhida para narrar, depois escrevo sobre ela, como vai ser, o jogo do tempo.
Às vezes, a ficção evoca o passado e o passado repercute no presente. Não queria que o Brasil passasse por isso, ver algumas coisas voltando, e como farsa, como diria o Marx
O senhor se aposentou como professor em 2000. Vive para a literatura hoje? Eu gostava de dar aula e dos meus alunos, mas achava que a universidade estava tomando o meu tempo, especialmente a burocracia, as reuniões. Detesto reunião. Dei aula até 1998. Pedi demissão em 2000, e nunca mais. Sem isso, não teria escrito Dois Irmãos. Quando larguei a universidade, estava encalacrado com o romance. Não que eu ache que seja preciso escrever muitos romances. O Raduan escreveu um romance e uma novelinha. Sinto falta às vezes de um salário fixo. Eu vendi muito, para o padrão brasileiro foi uma coisa de louco, algo como 300.000 exemplares, mas lá se vão dezessete anos desde a aposentadoria.
Trabalha todos os dias? Sim. Mas leio mais do que escrevo. Alguns escritores dizem que não leem quando escrevem. Eu ficaria louco. Estou o tempo todo escrevendo, como vou ficar sem ler? Não consigo escrever com rapidez. Nem minhas pobres crônicas, nem um bilhete. Eu sou mais rápido escrevendo a mão, como faço até hoje. Primeiro escrevo o livro à mão, depois passo a limpo e imprimo várias versões, reviso, mudo coisas. No fundo gosto desse processo. O que vou fazer da minha vida se eu for apressado? Ainda vou retrabalhar os dois volumes que faltam do romance. Isso me dá dois anos sem ouvir do meu editor, “Em que você está trabalhando?”. E não vejo problema se for influenciado por uma leitura. Acho ótimo. Os livros são vasos comunicantes. A gente depende o tempo todo deles para escrever. O que eu não posso é imitar o Grande Sertão. Isso seria o fim, um pastiche horroroso. A Clarice e o Rosa são intocáveis.
A experiência é fundamental na literatura, embora, no romance, a imaginação deva prevalecer sobre a sua vida, de longe. É a essência da experiência que estimula a imaginação. O sentimento mais profundo daquilo que você viveu. É isso que importa, muito mais do que o fato em si
Já abandonou algum livro depois de muito trabalho? Já. Abandonei um manuscrito de quinhentas páginas que escrevi em 1995, em Manaus, a história de um pintor em conflito com o pai. São surtos. Você acredita naquilo que está escrevendo. Quando terminei aquele calhamaço, percebi que não dava para publicar daquele jeito. Poderia dar, se eu reescrevesse, mas naquele momento eu não tinha fôlego. As coisas estavam acabando em Manaus, meu casamento, a universidade, meu pai morreu, a política era asfixiante.
Seus livros têm traços autobiográficos. Já pensou em um livro de memórias? Não. Minha vida não foi interessante ou picante o suficiente. O que eu não consegui viver eu imaginei. Não tenho pretensões de ser um grande escritor. Eu me contento com os leitores que eu tenho, não são poucos, isso para mim é uma surpresa e uma felicidade, com as traduções, com os ensaios, que se eu disser que me amarguram não é verdade. Não tenho a ambição de criar uma obra estética. Quem quer escrever no Brasil começa derrotado, porque nada pode ser melhor do que Grande Sertão. Há coisas excelentes, mas Grande Sertão é um livro assombroso. Li três vezes e a terceira não foi a última. Tenho certeza. Depois de lê-lo pela primeira vez, disse para mim mesmo: não sinto nem um pingo de vergonha de ser brasileiro. Esse complexo de inferioridade eu não tenho, porque a cultura brasileira tem muita força.