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Livro ‘NW’ joga luz às crises da vida urbana

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Por Simone Costa
Atualizado em 13 ago 2018, 16h30 - Publicado em 28 Maio 2014, 09h10

NW é a sigla de northwest (noroeste) no código postal de Londres. O distrito de Kilburn fica nessa área. Irlandeses, africanos, caribenhos, poloneses e russos vivem ali. “Na janela surge o horizonte de Kilburn. Não aburguesado, não aburguesável. Os picos e quedas de crescimento não chegam aqui. Aqui a queda é permanente. State Empire vazio, Odeon vazio, fachadas riscadas de grafite subindo e descendo como uma montanha-russa. Uma confusão de telhados e chaminés, alguns altos, alguns baixos, colados uns nos outros, cigarros chacoalhados numa carteira”. É nesse cenário que a escritora inglesa Zadie Smith, de 38 anos, ambientou seu último livro, NW, lançado recentemente no Brasil (Tradução de Sara Grünhagen, Companhia das Letras, 336 páginas, 52 reais).

Em Kilburn, mais especificamente em Caldwell (um conjunto habitacional, único lugar fictício apresentado no livro), cresceram Leah e Natalie. Elas têm por volta de 30 anos, mas se conhecem desde os 4, quando Natalie – ainda com seu nome original, Keisha – salvou Leah de se afogar numa piscina comunitária do lugar. As duas representam aquele lugar. Leah é branca, descendente de irlandeses e ingleses. Seu marido Michel é francês de origem argelina. Natalie é negra, filha de jamaicanos. Frank, seu belo e aristocrático marido, é uma mistura de caribenho com italiano.

As vidas de Leah e Natalie estão entrelaçadas desde o evento na piscina. Elas passaram a infância juntas, afastaram-se durante a adolescência, mas se reaproximaram pouco antes de irem à universidade. Natalie se tornou uma advogada respeitável e Leah se formou em filosofia. Seu trabalho é numa organização não-governamental de auxílio a pessoas carentes. Ela não sente que cresceu, não consegue assumir para Michel que não quer ter filhos e vê a vida de Natalie como uma prova de que sua existência não tem sentindo. “Leah vê Natalie dar uma corridinha até sua linda cozinha com seus lindos filhos. Tudo atrás daquelas portas francesas é pleno e significativo. Os gestos, os olhares, a conversa que não pode ser ouvida. Como é que você consegue ficar tão pleno? E tão pleno só de coisas significativas? Todo o resto Nat conseguiu de alguma forma descartar. Ela é adulta”. Leah só não sabe que por trás do que Natalie representa há alguém que não se encaixa no que conquistou.

NWOs destinos de Natalie e Leah fugiram da curva do que normalmente acontece em NW. Elas foram à universidade, conseguiram ter uma carreira e suas famílias. Ainda que a situação de Leah não pareça tão promissora quanto a de Natalie, ela está bem distante da realidade de inúmeros ex-colegas de colégio que se transformaram em usuários de crack e traficantes. Esse é o caso de Nathan, um garoto por quem Leah foi apaixonada nos tempos do colégio e que hoje perambula pelas ruas do bairro. Ele e Felix, outro cara que vive por ali, vão aparecer na história, não permitindo que Leah e Natalie se esqueçam de onde vieram.

NW é o quarto romance de Zadie Smith, lançado depois de sete anos sem publicar ficção. Quando ela começou, em 2000, com o livro Dentes Brancos (lançado aqui também pela Companhia das Letras), tinha 24 anos e foi alçada à posição de revelação inglesa dos últimos tempos. De lá para cá, a autora progrediu bastante e NW é seu livro mais denso. Ela mesma disse em entrevista a revista americana Interview que considera este como seu primeiro livro escrito por alguém adulto. “Há um monte de escritores ingleses que começaram jovens, de Dickens a Amis e McEwan. Mas eles eram muito mais seguros de si mesmos como escritores jovens do que eu. Os 30 e poucos anos são uma boa idade porque você se conhece um pouco mais. E eu parei de tentar agradar as pessoas”, disse. Talvez seja por isso que em NW ela tenha conseguido retratar de forma mais profunda uma certa tensão contemporânea.

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E não se trata apenas de falar de problemas sociais, como a desigualdade de oportunidades ou as dificuldades para quem enfrenta um país que não é o seu – vale lembrar que Zadie é filha de um inglês e uma jamaicana e ex-moradora da região onde a história acontece. A autora traz à tona questões que parecem assolar a geração atual. Ela mostra uma mulher que não quer engravidar, mas não sabe explicar essa sua decisão para si mesma e muito menos para o marido; outra que, apesar de ter o emprego e o casamento perfeitos aos olhos externos, vive um dilema interno que a faz sair em busca de aventuras com estranhos que encontra na internet. E os dois rapazes, Nathan – este, sim, alguém que de fato não conseguiu construir nenhuma alternativa – e Felix, que se vê impedido de se reerguer quando tenta encontrar uma saída para a falta de futuro. São questões existencialistas. Zadie, aliás, afirmou que estava lendo Albert Camus e Jean-Paul Sartre enquanto escrevia NW. Ao jornal inglês Telegraph ela afirmou: “Livros sobre pessoas negras como eu trazem, muitas vezes, uma preocupação com a busca de identidade. Isso é muito bom, mas este é o século XXI e os negros, como todos os outros, também têm uma crise existencial”.

O livro está dividido em quatro partes, cada uma delas dedicada a um dos personagens. Sua forma de escrever esse romance foi comparada por alguns críticos ao fluxo de consciência utilizado, por exemplo, pela também inglesa Virginia Woolf. Zadie já descartou que esta tenha sido uma influência e disse que buscou apenas descrever cada parte de uma maneira que estivesse bastante relacionada com o personagem em questão. Algumas  partes são excelentes, como a que narra um dia fatídico na vida de Felix. O leitor o acompanha durante uma visita à casa do pai, um jamaicano rastafári que há anos vive em NW, a negociação para a compra de um carro que ele quer muito reformar ou a ida à casa de uma ex-amante para lhe informar que agora mudou de vida. Já o capítulo sobre Natalie é uma espécie de jogo de paciência com o leitor.  É a maior parte do romance e está dividido em 185 trechos, em que é possível conhecer não apenas o passado de Natalie, mas também o de Leah. Ainda que alguns desses fragmentos não sejam algo que se possa chamar de interessante, o conjunto da obra faz merecer sua leitura até o final. É uma reflexão sobre uma realidade particular de Londres, mas que pode ser transportada e pensada para outras partes deste mundo contemporâneo.

De A a B revivido:

O doce fedor de narguilé, cuscuz, kebab, gás do escape de um ônibus parado. Noventa e oito, dezesseis, trinta e dois, lotados — é mais rápido andar! Fugitivos do St. Mary, Paddington: homem fumante prestes a ser pai, velhinha girando a cadeira de rodas e fumando, sujeito duro na queda segurando um saco de urina, um saco de sangue, fumando. Todo mundo adora cigarro. Todo mundo. Jornal polonês, jornal turco, árabe, irlandês, francês, russo, espanhol, News of the World. Desbloqueie seu celular (roubado), compre um kit de baterias, um kit de isqueiros, um kit de perfumes, óculos de sol, três por cinco, um tigre de porcelana tamanho real, torneiras douradas. Cassino! Todo mundo acredita em destino. Todo mundo. Era pra ser. Simplesmente não era pra ser. Topa ou não topa? Telas de tv na loja de tv. Cabo de tv, cabo de computador, cabos de áudio e vídeo, faço um bom preço pra você, um bom preço. Folhetos, ligue pro exterior por menos de 4, aprenda inglês, sobrancelha com cera, Falun Gong, você já aceitou Jesus como seu plano de ligação pessoal? Todo mundo adora frango frito. Todo mundo. Banco do Iraque, Banco do Egito, Banco da Líbia. Táxis vazios por causa da luz do sol. Aparelhos de som portáteis pelo mesmo motivo. Italiano sozinho, mocassins, perdido, procurando Mayfair. Cento e uma maneiras de se proteger: a tenda toda preta, a grade facial, na nuca, estampa Louis Vuitton, estampa Gucci, cordão amarelo, preso a óculos de sol, quase nunca colocados, listrados, rosa-choque; combinando com agasalhos, jeans coladíssimos, vestidos de verão, blusas, regatas, saias de cigana, calças boca de sino. Sem nenhuma relação com os debates nos jornais, no parlamento. Todo mundo adora sandálias. Todo mundo. Canto de passarinho! Centro comercial sujo e desonesto para apartamentos-mansões para a casa de um inglês é o seu castelo. Veículos sem teto, com teto, sem pressa, com hip-hop. Veja o dinheiro acumular. Nossa! Luzes de segurança, portões de segurança, muros de segurança, árvores de segurança, Tudor, modernista, pós-guerra, pré-guerra, abacaxis de pedra, leões de pedra, águias de pedra. Vire para o leste e sonhe com o Regent’s Park, com St. John’s Wood. Os árabes, os israelenses, os russos, os americanos: aqui unidos pela cobertura mobiliada, pela clínica particular. Se pagarmos o suficiente, se mantivermos os olhos meio fechados, Kilburn não precisa existir. Refeições gratuitas. Inglês como segunda língua. Aqui está a escola onde esfaquearam o diretor. Aqui está o Islamic Center of England frente a frente com o Queen’s Arms. Ande no meio disso, seu juiz, você! Todo mundo adora o Grand National. Todo mundo. Já estamos mesmo em abril? E aí vão eles!

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