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Harper Lee e o livro que deveria ter ficado na gaveta

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jul 2020, 00h08 - Publicado em 10 nov 2015, 13h57
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Harper Lee, sua irmã e ex-tutora, Alice Lee, e sua advogada, Tonja Carter

Maria Carolina Maia

Anunciado com estrondo pela editora HarperCollins como uma descoberta, depois de a advogada Tonja Carter alardear ter encontrado o seu manuscrito perdido entre o acervo de sua cliente mais famosa, a escritora Harper Lee, o romance Vá, Coloque um Vigia, recém-lançado no Brasil pela José Olympio, logo ganhou ares de embuste. Surgiram suspeitas de que, ao contrário do que disse Tonja Carter, o livro não fosse algo novo, uma possível continuação de O Sol É para Todos, romance que consagrou Harper Lee nos anos 1960, à espera da chance de ser publicado, e sim uma primeira versão do livro que se tornaria um dos maiores clássicos da literatura americana, com um Pulitzer, 30 milhões de cópias vendidas, uma adaptação para o cinema com Gregory Peck e três Oscar no currículo.

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Não faltam motivos para desconfiança. A começar pela própria autora: Harper Lee chegou a declarar em entrevistas, tempos atrás, que não iria publicar mais nada e que já tinha dito tudo o que tinha para dizer sobre a questão racial nos Estados Unidos em O Sol É para Todos – e o tema é o mesmo que dá vida a Vá, Coloque um Vigia. Por que hoje, aos 89 anos, surda, cega e mantida sob os cuidados de uma instituição para idosos, ela mudaria de ideia? Há quem questione o seu discernimento hoje e, é claro, a influência que a advogada mantém sobre ela. Antes de Vá, Coloque um Vigia ser lançado, a escritora assinou um texto em que dizia ser a favor da publicação e em que chamava Tonja Carter de sua “amiga querida”. Suspeito, murmuraram muitos, ainda mais porque a advogada só anunciou a sua descoberta, providencialmente, após a morte de Alice, irmã e tutora da vida inteira de Harper.

va_coloque_um_vigiaTambém sustentam a tese de fraude os relatos, colhidos pelo jornal New York Times, sobre uma reunião realizada em 2011, em Monroeville, cidade de Harper Lee. O encontro teria posto lado a lado um antigo agente da escritora e um especialista em raridades da casa de leilões Sotheby’s. Ali, na presença da advogada Tonja Carter, se teria mostrado e discutido o manuscrito de Vá, Coloque um Vigia, apresentado então como o original de O Sol É para Todos, apesar das diferenças notáveis (leia mais abaixo) entre eles. Tonja alega que deixou a reunião antes da discussão do manuscrito – o que a isentaria de conhecê-lo. A reportagem do NYT, porém, ouviu os outros presentes e concluiu que a advogada esteve no encontro até o fim.

Em se tratando de fraude a história contada por Tonja, Vá, Coloque um Vigia não passaria de uma tradução clara do termo caça-níquel. E, de fato, os únicos a ganhar com a publicação do livro são a sua editora, a HarperCollins, que registrou 1 milhão de exemplares vendidos apenas na primeira semana, e a própria advogada – além da notoriedade, ela pode ter recebido um punhado de dólares por entregar de bandeja, para a editora, o manuscrito que Harper Lee teria mantido na gaveta por mais de quarenta anos.

Mas, especial e curiosamente, a comprovação da tese de farsa faria de O Sol É para Todos um caso exemplar da atuação de um editor. As mudanças operadas no original sob a batuta de Tay Hohoff, da editora JB Lippincott, fizeram de Vá, Coloque um Vigia, um romance frágil e entediante na maior parte do tempo, uma história envolvente, ainda que imperfeita, capaz de ecoar na mente do leitor por um bom tempo. E são essas mesmas diferenças entre os livros que servem de pista final à teoria da fraude.

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A metamorfose foi completa. Em Vá, Coloque um Vigia, o original, a personagem principal era Jean Louise Finch, a menina que na infância era chamada de Scout, apelido pelo qual ficou conhecida no imaginário coletivo americano. A história, contada em terceira pessoa, mostra a passagem de Jean Louise da juventude à idade adulta, com as dores que essa transição impinge. É quando Scout passa a enxergar os defeitos do pai, o advogado Atticus Finch, que ela cresceu admirando, e que agora descobre se tratar de um racista inveterado. Com residência em Nova York, a garota retorna a Maycomb para visitar a família, e então descobre que o pai faz parte de um grupo empenhado em barrar os avanços dos negros no sul, em plena efervescência da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Em cenas por vezes banhadas de sentimentalismo e através de diálogos longos e ridiculamente didáticos, o leitor precisa se esforçar para acompanhar o drama de Scout, ainda que lhe dê razão no embate do tipo preto no branco – sem trocadilhos – com Atticus.

“- Então vamos ver as coisas do ponto de vista prático: você quer bandos de negros nas nossas escolas, igrejas e cinemas? Quer que eles façam parte do nosso mundo?

– Eles são gente, não são? Não vimos nenhum problema em trazê-los da África quando eles geravam dinheiro para nós.

– Você quer que seus filhos estudem em uma escola que foi rebaixada para acomodar crianças negras?

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– Atticus, você sabe que o nível de ensino da escola aqui da rua não podia ser pior. Eles têm direito às mesmas oportunidades que todos nós, têm direito às mesmas…”

Dispensável dizer a quem pertence cada travessão. Em outro trecho, um exemplo do sentimentalismo derramado:

“Ouvi-lo se referir a ela pelo apelido de infância feriu seus ouvidos. ‘Nunca mais me chame assim. Aquele homem que me chamava de Scout está morto e enterrado.”

o_sol_e_para_todosEm certos pontos, em especial nas primeiras páginas, quando Jean Louise viaja de trem em direção a Maycomb, é possível reconhecer o talento de Harper Lee – a facilidade para escrever de forma saborosa que Tay Hohoff parece ter enxergado e aprimorado. Ou levado a autora a burilar e burilar. O Sol É para Todos é um outro livro, completamente distinto de Vá, Coloque um Vigia. Nele, Scout se converte em narradora e, na história contada em primeira pessoa por ela, que relembra a infância em Maycomb, perde o protagonismo para o pai, Atticus, um advogado escorreito que assume, com coragem e dignidade, o caso de um negro injustamente acusado de estupro por uma branca, no que dá uma enorme lição de moral para os filhos, Scout e Jem, e para gerações e gerações de americanos.

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A transformação de Atticus de um livro a outro teria chocado uma boa parcela de leitores nos Estados Unidos, diga-se de passagem. O que não deixa de ser uma grande tolice. Primeiro, porque se trata de um personagem de ficção. Segundo, porque são justamente as diferenças na história que indicam que um livro não é continuação do outro. São muitas e irreconciliáveis as incongruências. Se, em O Sol É para Todos, a tia Alexandra se muda para a casa de Atticus quando Scout é criança, porque quer fazer da menina-moleca uma dama, em Vá, Coloque um Vigia, ela só passa a viver com o irmão quando Jean Louise está em Nova York, para ajudá-lo a enfrentar uma agressiva artrose. E se, em O Sol É para Todos, o negro acusado de estupro tinha um braço inútil, em Vá, Coloque um Vigia, ele simplesmente não tem o braço, perdido para uma motosserra. Há ainda outras discrepâncias, como parentes que existem em apenas em Vá, Coloque um Vigia e foram eliminados, para o bem do livro e da leitura, em O Sol É para Todos.

Sim, a história de que Vá, Coloque um Vigia foi encontrado por acaso e seria uma sequência do clássico clássico O Sol É para Todos tem tudo para ser falsa. E, sim, o livro é um caso exemplar – um case – do bom e invisível trabalho que um editor pode orquestrar. E, não, não, não, esse livro nunca deveria ter saído da gaveta em que Harper Lee parece o ter enterrado.

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