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As engrenagens de Enrique Vila-Matas

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Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 ago 2018, 22h26 - Publicado em 22 Maio 2011, 14h43

Não à toa o espanhol Enrique Vila-Matas é chamado pelos portenhos, orgulhosos, de o escritor mais argentino da Espanha. Leitor de ensaios e dado a costurar citações quase sempre inventadas, ele cria tramas de realidades diversas e convida o leitor a participar da construção de seus romances. Esse estilo borgiano se encontra em Dublinesca (Cosac Naify, tradução de José Rubens Siqueira, 320 páginas, 55 reais), que Vila-Matas acaba de lançar em sua segunda viagem ao país – a primeira foi em 2005, quando, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), se surpreendeu ao perceber que o poeta Fernando Pessoa, “apesar de português”, tinha boa acolhida entre os leitores brasileiros.

Além de dar direção à prosa de Vila-Matas, esse estilo borgiano, bem temperado por sua criatividade e sua biblioteca pessoal, dá fama ao escritor. Mas é também esse estilo que impõe limitações ao espanhol. Dublinesca é, sem dúvida, uma leitura prazerosa — mesmo que às vezes fique arrastada, aliás contrariando neste ponto as lições de Borges. Mas não se pode negar que a fórmula sustenta o romance se deixa perceber com facilidade, dando a quem lê a sensação de que o livro foi construído sobre um esquema, sobre uma fôrma pré-definida.

O romance conta a saga crítica de um editor falido, Samuel Riba, um francófilo morador de Barcelona, a cidade de Vila-Matas. Riba está imerso em várias crises: com a literatura, que vê fenecer sem a chegada de um novo gênio; com o casamento, porque já não se entende com a agora budista mulher; e com saúde e a vida social, porque parou de beber e passou a fugir dos amigos de copo.

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Para manter a imagem de filho bem sucedido diante dos pais, que nem imaginam a sua derrocada profissional, Riba inventa que fará uma viagem a Dublin para discutir Ulysses, de Joyce – autor que ao lado de Beckett é um dos eixos de significação do romance. O projeto, depois transformado num adeus à literatura E(m um “funeral da era de Gutemberg”) e também num “salto inglês” (uma virada para a cultura anglo-saxã), cresce além do previsto. Ele toma corpo numa evolução prolixa, que consome mais páginas do que precisaria, prejudicando o ritmo do livro. E passa a contar com três amigos de Riba, cooptados pelo editor para acompanhá-lo até a Irlanda.

Tudo, como num livro de Roberto Bolaño, é contado entre referências a leituras diversas e com humor sutil e prazenteiro. Vila-Matas, aliás, reconhece a proximidade com o chileno, de quem foi amigo. “Conhecê-lo foi ótimo, porque logo senti que tínhamos muito em comum com respeito à leitura. Eu me sentia um estranho entre os escritores espanhóis pela minha paixão pelos livros. Encontrar alguém com manias e gostos semelhantes aos meus me fez sentir menos só”, conta. “Eu também achava muito interessante o modo como ele criava mundos paralelos e como trabalhava, escrevendo vários livros ao mesmo tempo.”

O bom humor do texto, porém, não elimina a fórmula que serve de espinha ao romance. O livro segue o padrão do ensaio, de que Vila-Matas se diz leitor assíduo, e que, apesar de dar sabor extra a Dublinesca, dá também a aparência de repetir uma receita de bolo. No início, o autor apresenta o seu objeto de estudo e o método usado para perscrutá-lo. O objeto, no caso, é Riba, o editor falido que carrega em si o signo da crise atual da literatura, acuada pelo crescimento dos meios digitais e dos best-sellers que desviam leitores dos livros sérios. A sua apresentação é aliás exagerada e repetitiva: Vila-Matas fala mais do que deveria sobre Riba e chega a repetir informações, como a de que ele “lê tudo como texto literário”.

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O método de Dublinesca é uma teoria geral do romance feita de cinco pontos – intertextualidade, conexões com a alta poesia, consciência de uma paisagem natural em ruínas, ligeira superioridade do estilo sobre a trama e escrita vista como relógio que avança –, que Vila-Matas inventou em 2008, durante uma viagem a Lyon e emprestou a seu personagem. A história vivida por Riba é parecida com a do autor, mas com uma ótima diferença: enquanto o escritor derivou dela um romance, seu editor fez dela uma fogueira, porque, explica o narrador do livro, a melhor coisa do mundo é viajar e perder teorias, perdê-las todas.

Essa mecânica exposta não é de todo mal. Ela também pode ser entendida como convite para a entrada do leitor na trama. Ao mostrar a ele as peças de que é feito o livro, Vila-Matas oferece as ferramentas para que construa a própria interpretação dos fatos. A participação é fundamental: de acordo com o envolvimento de quem lê, o romance adquire maior ou menor qualidade. E há diversos temas que permitem reflexão, como a já falada crise da literatura e a dificuldade de o homem encarar a própria ruína, física ou profissional. É também sobre esses temas que Enrique Vila-Matas fala a VEJA Meus Livros. Confira abaixo os melhores momentos da conversa.

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No início de Dublinesca, o editor Samuel Riba escreve uma teoria geral do romance, com cinco elementos: intertextualidade, conexões com a alta poesia, consciência de uma paisagem natural em ruínas, ligeira superioridade do estilo sobre a trama e escrita vista como relógio que avança. Ela coincide com uma teoria sua?
Essa teoria de Riba eu mesmo escrevi, em 2008, antes de saber que faria Dublinesca, iniciado no mesmo ano. Mas a teoria só serve para este romance – cada livro meu tem uma teoria particular por trás. Em Dublinesca, há de fato uma supremacia do estilo sobre a forma e sobre a trama e a presença de ruínas culturais do Ocidente, por exemplo.

E essa teoria foi escrita numa viagem a Lyon, como aconteceu com o personagem?
Sim. Eu criei a teoria durante uma viagem a Lyon, da mesma forma como aconteceu com Samuel Riba. Como ele, eu fui convidado para participar de uma conferência e, quando cheguei à cidade, não havia ninguém à minha espera. Fui para o hotel sozinho, sem entender o que fazia lá, já que ninguém me procurou para explicar coisa nenhuma. Escrevi a teoria para preencher meu tempo – mas, diferentemente de Riba, não queimei – e parti no dia seguinte, sem fazer minha palestra. Esqueci por um tempo da teoria, mas depois vi que ela serviria para um romance. Ela serve de base para o livro, mas somente para esse. Sou contra teorias. Não quero impor nada a ninguém.

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O senhor vê um salto entre essa teoria e a dos seus romances anteriores?
Não há grande diferença entre a teoria que embasa esse romance e a de outros livros meus. Mas há algumas mudanças,penso até que me contradigo, o que acho ótimo. Cada pessoa são muitas pessoas ao mesmo tempo e pode dizer uma coisa num momento e o contrário depois. Todos os dias nós nos contradizemos. Às vezes, acompanho a discussão de duas pessoas e os dois pontos de vista me parecem certos. Me lembro agora de um amigo que sempre concordava com o que ouvia e em seguida dizia “mas”, e esse “mas” era a literatura para mim. O que permite discutir tudo. Isso na literatura acontece muito, porque a literatura não é como o Twitter. A construção das frases é muito mais complexa. A frase de um romance pode se desdobrar em várias.

O senhor não gosta do Twitter?
Eu gosto muito de internet, o Google ajuda muito no trabalho, pode até substituir uma biblioteca. Mas o Twitter elimina a complexidade das frases.

A ameaça dos meios digitais para a literatura é um dos temas tratados por Dublinesca. Como o senhor vê essa ameaça?
O livro de papel não deve morrer, mas ter livros em casa vai se tornar uma coisa cada vez mais elitista. Afinal, espera-se que o livro digital seja mais barato.

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Seus livros são forrados de citações, quase sempre inventadas. É um método bem borgiano, não é?
Sim, eu pertenço à escola de Borges. Pertenço a uma estirpe de escritores que não são compreensíveis sem Borges. Na Argentina, sou visto como o escritor espanhol mais argentino de todos. E faz sentido, porque lá se lê muito ensaio e eu sou um leitor de ensaio mais do que de ficção, curiosamente. Quanto às citações, eu crio e recrio tanto que, se você me perguntar, por vezes não saberei dizer se determinada frase é minha ou de fato do autor que menciono. Essa recriação faz parte da leitura ativa. Ela opera o tempo todo, mesmo quando leio meu horóscopo no jornal.

Seu horóscopo?
Isso. Quando leio meu horóscopo no jornal de Barcelona, às vezes encontro frases que não me dizem nada, mas, um tempo depois, passam a significar alguma coisa. Se o texto, por exemplo, me diz, ‘Hoje, você empreenderá uma viagem com seus netos à Austrália’, e eu não tenho filhos nem vou à Austrália, num primeiro momento ele não significa nada para mim. Mas, um instante depois, penso que a Austrália representa uma antípoda da Espanha, o oposto, e os filhos podem ser os personagens do romance que escrevo, e que viajam para um lugar contrário à Espanha. É o que faço, como leitor ativo.

O senhor tem hoje 63 anos. Quando escreveu Dublinesca, tinha 60, aproximadamente a idade do personagem…
Sim, sim, isso foi de propósito. Eu queria criar um personagem distinto de mim, alguém que tem a mesma idade e pode parecer que sou eu, mas é outro. Ao mesmo tempo, é um livro que eu não poderia escrever se não tivesse a mesma idade do protagonista, ter a mesma idade que ele me ajuda a explicar como ele se sente por vezes no mundo, mas é alguém diferente de mim. É outra pessoa. Riba reúne um pouco de mim e de muitas pessoas que eu conheço, inclusive de alguns editores meus, boas e más características deles, porque os personagens têm de ter luz e sombra.

Riba tem crise com o envelhecimento. Como é, para o senhor, a passagem do tempo?
Pode ser dramático ou fácil. Depende do momento. Há manhãs que acordo pensando que tenho 200 ou 400 anos e então, quando recordo a idade que tenho, fico contentíssimo. Depende um pouco do estado de ânimo e do horário do dia, também.

Mas, como Riba, o senhor se considera um leitor voraz, não?
Sem dúvida. Se alguém fosse fazer uma biografia minha, deveria ser a partir dos livros que escrevo, porque lá encontrará os livros que leio. Sou um leitor que escreve. Está tudo ligado. Há muitos escritores que pensam que não devem incomodar o leitor, lhe pedir nada, lhe fazer ler de modo participativo, porque o leitor é um consumidor, alguém que paga pelos livros. Mas eu creio que sim, que se pode e se deve exigir do leitor. Eu escrevo para leitores que trabalham no livro e o completam, escrevo para um leitor ativo, que participa do que lê. Me surpreende agora que os leitores busquem entretenimento. Me parece lamentável que esse leitor de best-seller seja o leitor-modelo hoje.

Esse é um problema atual ou sempre existiram leitores de best-sellers?
É um problema atual. Antes, esse tipo de leitor era considerado de segunda categoria. Agora, ele quer se igualar ao leitor ativo, por motivos comerciais. A internet contribui para isso. É alarmante. Não para mim, que já tenho leitores, mas para os escritores mais jovens. Quem quer lançar um livro tem de pensar em modelos fáceis para publicar. Está difícil ser recebido por uma boa editora. Esse problema é pano de fundo em Dublinesca. Mas não tratei de modo dramático, fui irônico, até para que fosse mais crível, e esse romance tem um final estranhamente otimista, porque propõe o renascimento da literatura.

Sempre há alguém dizendo que a literatura morreu…
É porque a literatura é feita de crises, afinal, sem crise, não se pode avançar. Mas a literatura nunca vai morrer. Só morre se acabar a linguagem, que é a única forma que temos de comunicação. Seria como um poema de Wallace Stevens, que fala de umas folhas que, agitadas pelo vento, produzem um ruído. Só ruído. Sem significado. É um poema belíssimo, que pode explicar o que aconteceria se desaparecesse a linguagem.

 

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