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A cor e o poder na Angola do século XVII

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Por Raissa Pascoal
Atualizado em 13 ago 2018, 21h27 - Publicado em 23 Maio 2012, 22h43

Nada melhor do que começar um romance insultando o personagem principal para marcar seu caráter antipático. O efeito causado pelas palavras iniciais do sacerdote franciscano Simão de Oliveira sobre Manuel Cerveira Pereira, governador de Luanda no começo do século XVII, chamado aqui polidamente de ordinário, dá o tom de A Sul. O Sombreiro, novo livro do angolano Pepetela, lançado este mês pela editora Leya (364 páginas, 44,90 reais/edição impressa e 26,90/digital). Assim como toda a produção deste ganhador do Prêmio Camões de 1997, – 19 livros e duas peças de teatro escritos ao longo de seus 70 anos –, este romance também é fortemente embasado na história de Angola e recorre a documentos de época para narrar a criação da cidade de Benguela por Cerveira Pereira, um português inescrupuloso nomeado pela coroa para gerir a então colônia.

Abertamente a favor da luta anticolonialista e ex-guerrilheiro do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Pepetela tempera os fatos históricos com personagens ficcionais para marcar os conflitos causados pela colonização enquanto narra a expedição idealizada por Cerveira Pereira rumo ao sul em busca de cobre. “A história real e a fictícia correm paralelas, assim como havia os europeus de um lado e os africanos de outro”, afirma o escritor. “Quando se encontravam, era sempre perigoso.” Ao longo da jornada, que culminou na fundação de Benguela, os portugueses subjugaram os povos nativos e escravizaram os negros, criando a relação entre cor e classe exploradora que persiste até hoje em Angola. O cobre que Cerveira Pereira procurava, porém, jamais foi encontrado.

O romance e o Brasil – Também colônia do reino de Portugal, o Brasil não fica de fora de A Sul. O Sombreiro. O país é citado como um dos principais mercados de destino para a mão-de-obra escrava capturada em Angola e para degredados.

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A relação entre as duas colônias, no entanto, extrapola as referências presentes no livro de Pepetela. A história da criação de Benguela, que seguiu o modelo colonial português de catequização, dominação e exploração, bem que poderia ser sobre uma cidade brasileira no século XVII. Na época, o país via crescer o número de entradas e bandeiras – tanto as oficiais, bancadas pela coroa portuguesa, quanto as privadas que buscavam explorar territórios do interior. Os negros capturados em Angola poderiam facilmente ser substituídos pelos índios daqui – embora, no caso do Brasil, os metais preciosos tenham sido descobertos, ao contrário do que sucedeu a Cerveira Pereira.

Leia a seguir trechos da entrevista de Pepetela a VEJA Meus Livros:

De onde surgiu a ideia de mais um romance histórico? Certamente tem a ver com o fato de eu ter nascido em Benguela. A minha primeira escola se chamava Manuel Cerveira Pereira, em homenagem ao governador português que a fundou. Conheci sua história e o que escreviam sobre ele – textos sem meio termo, ou muito críticos, ou a tentar defendê-lo.

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Em que fontes o senhor foi buscar registros daquela época? Pesquisei bastante em registros religiosos do Vaticano e de Portugal. Encontrei 20 volumes de uma coleção chamada Monumento Missionário Africano, escrita em geral para o Vaticano pelos padres e missionários. No meio delas, também eram publicadas textos dos reis e dos governadores. Existem inclusive alguns relatórios do próprio governador Cerveira Pereira e cartas de jesuítas com referências a ele. Isso me ajudou bastante a perceber que ele tinha amigos e inimigos e que tudo estava ligado à guerra entre as ordens religiosas pelo controle de territórios nas colônias, principalmente os franciscanos e os jesuítas.

Foi difícil recriar o personagem do governador? Difícil mesmo foi não cair na facilidade de tratar como verdade tudo aquilo o que diziam dele. É claro que é um personagem, no mínimo, antipático, mas tentei não retratá-lo com a mesma má vontade dos registros deixados pelos inimigos dele. A forma foi, sobretudo, não pôr o narrador a contar os feitos dele, só de vez em quando. É uma forma para que ele se explique, defenda-se um pouco e torne-se uma personagem um pouco mais espessa.

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Por que existe um personagem fictício, o negro angolano Carlos Rocha, em um livro basicamente histórico? Eu gosto de fazer coisas assim para acordar o leitor. Esse personagem traz algumas armadilhas. A história real e a fictícia correm paralelas, assim como havia os africanos de um lado e os europeus de outro. Quando se encontravam, era sempre perigoso.

O que representa a figura de Carlos Rocha? Carlos Rocha é um pouco a anunciação de alguma coisa que virá no futuro de Angola. Ele é um homem livre, mas tem medo de ser escravizado. Os outros negros o consideravam um branco, porque ele tinha comportamento de branco, usava botas, tinha mosquete. Isso ainda existe em algumas zonas hoje: negros que se vistam ou tenham vida de europeus são considerados brancos.

Ainda é latente essa diferenciação pela cor em Angola? Isso ainda não está resolvido. Parecia que estava pouco depois da independência, em 1975, mas, ultimamente, agravou-se. Começou a haver mais pessoas claras – europeus, angolanos mais claros, libaneses e sírios – que vivem bem, enquanto a maioria da população vive mal. Isso cria uma associação da cor a uma classe que explora, embora os grandes ricos de Angola sejam negros. Por causa da cor, às vezes, me chamam de colono, que tem uma conotação negativa em Angola. Eu fico bravo, porque lutei contra eles. Depois, eles me reconhecem e dizem “Desculpa lá kota, não era consigo”. Mas era, era com a minha cor. (Kota é um termo respeitoso em quimbundo, uma das línguas originais de Angola, empregado para homens mais velhos e ainda muito em uso pelos angolanos).

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Por que a história de Benguela não era tão conhecida mesmo sendo uma das cidades mais importantes do país? Porque é tudo artificial. Nunca houve reino nem rei de Benguela. Parece-me que havia um projeto do Cerveira Pereira e do rei de Espanha de criar uma procissão ao sul do rio Kwanza até o Cabo da Boa Esperança e, depois do outro lado, até o Índico, até Moçambique atual. Toda essa parte sul da África seria uma colônia, porque em Luanda havia muitos conflitos. Essa é a base do nascimento de Benguela e da rivalidade entre a cidade e Luanda, que é um pouco como acontece entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Qual foi a reação dos angolanos com a publicação do livro? Esperava que, pelo menos, a frase de início provocasse logo reações violentas, mas não provocou. É um bom sinal, por mostrar que ultrapassamos a fase do complexo colonial e já estamos em outra.

Como é a cidade de Benguela hoje? Benguela ficou muito parada no tempo, por isso houve oportunidade de os governos municipais endireitarem as ruas e ela ficou alinhada. É uma cidade pequena, com cerca de 500.000 habitantes. A região começa a se tornar uma área metropolitana, porque está a se juntar com Lobito, uma cidade com um porto ao norte, a 30 km, e Catumbela, que fica no meio das duas. Hoje, Benguela é um grande centro pesqueiro, o maior de Angola, apesar de todas as potências pesqueiras estarem a chupar isso.

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O cobre nunca chegou a ser explorado? Nunca existiu. Pelo menos até hoje não foi descoberto. Agora, vão começar a explorar cobre no país, mas é mais ao norte. Da mesma maneira, nunca houve prata perto de Luanda e essa foi uma das razões da criação da cidade. De fato, essas cidades da costa, quando nasceram, viviam do tráfico de escravos e essa era a principal razão. Benguela era o porto principal para os escravos enviados a Minas Gerais e às cidades mais ao sul do Brasil; Luanda era a principal saída para Salvador e Recife.

Não tem como ler o livro e não comparar com o Brasil, na época das bandeiras. O senhor conhece essa parte da história brasileira? Sim, conheço um bocado e até lembro que havia uma série de televisão sobre os bandeirantes, A Muralha (2000). As histórias são parecidas, é o processo dos conquistadores.

Existe algum escritor brasileiro de quem o senhor gosta? Há escritores que me influenciaram muito, porque eu os li quando era muito jovem, com 13 ou 14 anos. São escritores do nordeste, como Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Para mim, esses são referência. Gosto de outros escritores mais modernos, como João Ubaldo Ribeiro, de quem sou amigo, e Fernando Gabeira, que agora está um bocado desaparecido. Também leio poetas, como Castro Alves, Manuel Bandeiras, Carlos Drummond e Vinicius de Moraes.

 

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