O foco de Bolsonaro no meio da pandemia era ele mesmo e sua família
Video da reunião ministerial do dia 22 de abril é uma espécie de sumário trágico do governo e do presidente durante a crise mais grave da nossa geração
É preciso olhar para os fatos revelados tendo em mente que toda a desastrosa reunião do dia 22 de abril (e desastrosa é um adjetivo até leve) aconteceu na escalada dos mortos por conta do novo coronavírus. O presidente havia fritado e derrubado um bom ministro da Saúde dias antes, e, naquele momento, estava preocupado somente que não “f* com a sua família”, como adiantou a Veja.
O centro da preocupação do presidente era a Polícia Federal. E estava tão focado nesse ponto que foi capaz de ameaçar demitir, na presença de várias testemunhas, o então ministro da Justiça Sérgio Moro, que havia avalizado a bandeira anti-corrupção levantada por Bolsonaro – sem a merecer – durante a campanha.
Esse mais recente capítulo, a divulgação do vídeo da reunião ministerial apontado como prova pelo ex-ministro Moro, é uma espécie de sumário do governo Bolsonaro. A gestão Bolsonaro – se é que dá para chamar aquele encontro das principais lideranças do governo brasileiro de um ato verdadeiro de gerir e administrar – é aquilo mesmo que a reunião mostrou.
E mesmo que seja impossível ignorar as barbaridades ditas pelo presidente e seus ministros, como a fala de Bolsonaro contra opositores políticos do governo ou a defesa de armar a população para ela não ser “escravizada”, é preciso fazer um esforço para focar na questão mais urgente: está ou não está explicitada uma tentativa de interferência na Polícia Federal? O ex-ministro Moro saiu do governo fazendo denúncias verdadeiras ou falsas?
Para além da notória falta de compostura de Bolsonaro e da falta de compreensão da dimensão do cargo que ocupa, o que se vê no vídeo é um presidente da República sem pudor de mostrar que não vê diferença entre um órgão de governo e um de estado. “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”, afirmou o presidente sem corar o rosto. É o que mostram as imagens. O presidente não “tem a PF” e o órgão “não deve” informações a ele.
As falas de Bolsonaro demonstram sim uma tentativa de interferência na PF para proteger o seu clã político, ou seja seus filhos e aliados. “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”, diz, olhando para Sérgio Moro.
Nenhum amigo do presidente é protegido por agentes escalados pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). É isso que aponta a defesa de Bolsonaro, a tese de que o político falava de sua segurança pessoal e não da PF. É preciso lembrar mais uma vez que o próprio presidente já havia dito, de forma pública, em agosto do ano passado, que se não conseguisse trocar o superintendente da PF no Rio, trocaria o diretor-geral do órgão.
Juristas ouvidos pela coluna afirmam que dois crimes podem estar relacionados com as afirmações de Bolsonaro na reunião ministerial, somado aos atos que se seguiram de demissão do ex-diretor-geral da PF Maurício Valeixo e a troca na superintendência do Rio de Janeiro. São eles: advocacia administrativa (patrocinar interesse privado diante da administração pública) e prevaricação (faltar ao cumprimento do dever por interesse ou má-fé). Os dois foram citados como eventuais crimes cometidos pelo presidente no pedido de abertura do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Em termos de gravidade, os erros da ex-presidente Dilma Rousseff, por exemplo, não se igualam ao que ocorre agora – nem se comparam à crise política-institucional gerada nos últimos 17 meses pelo presidente Jair Bolsonaro. Nunca um ministro da presidente petista defendeu a prisão dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte da República, guardiã da Constituição e da democracia.
As pedaladas fiscais foram graves. Na economia, levaram o país de volta ao rombo das contas públicas com reflexos que se arrastam até hoje. A crise econômica acirrou a polarização sem precedentes, por causa da revolta de parcela da população com o estelionato eleitoral de 2014. Dilma havia dito, na sua campanha comandada por João Santana, que não havia crise, mas a recessão, a inflação e o desemprego explodiram no começo de 2015.
Nada, contudo, chega aos pés do que o país tem visto no governo Bolsonaro, especialmente em relação ao desrespeito às instituições democráticas. Esse momento da divulgação do vídeo ajuda a ver sem retoques que governo é este que o país tem em um momento tão doloroso da vida nacional, quando mais de 20 mil pessoas tombam em uma pandemia – pandemia esta que o presidente insiste em desdenhar. Ou ignorar, como fez durante toda a reunião ministerial.