Funai e o descaso com os índios isolados
Fundação ignora reclamações, desmonta equipes de índios isolados e aumenta insatisfação de servidores com a gestão de Marcelo Xavier
Enquanto diversos povos indígenas sofrem para tentar se proteger em meio à pandemia do coronavírus que assola o país, a forma como a atual gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai) lida com os índios isolados, os mais vulneráveis neste momento, continua sendo alvo de reclamações dos servidores e coordenadores do órgão. A presidência da Funai, liderada por Marcelo Xavier, ignora pedidos contra exonerações, desmonta equipes experientes e aumenta as críticas internas.
À medida que a atual gestão ignora os pedidos das equipes que trabalham há anos com esses povos, o coronavírus continua fazendo vítimas: 158 povos já foram afetados pela doença e 836 indígenas já morreram vítimas da Covid-19. Os servidores asseguram: os índios isolados nunca estiveram tão vulneráveis.
Um dos últimos pontos de atrito entre o presidente da Fundação e os servidores foi a nota de pesar publicada no início de setembro, após a morte do indigenista Rieli Franciscato, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau (RO), que trabalhou por mais de 30 anos com índios isolados e de recente contato. Tragicamente, a flecha que tirou sua vida em Rondônia veio dos índios isolados, grupo ao qual se dedicou nos últimos 10 anos de sua vida com a função de protegê-los.
Fontes afirmaram à coluna que Rieli era contra o desmonte comandado pela atual gestão da Funai e sempre condenou o trabalho dos missionários próximo a índios isolados ou de recente contato, sendo alvo de perseguição dentro do próprio órgão indigenista. O coordenador de índios isolados da Funai, o missionário Ricardo Lopes Dias, em nota de pesar da Funai que indignou servidores, diz que “Rieli dedicou a vida à causa indígena. Com mais de três décadas de serviços prestados na área, deixa um imenso legado para a política de proteção desses povos”.
Para os servidores, no entanto, a nota seguiu apenas um protocolo, sem retratar a realidade. Na visão dos funcionários da Funai, Ricardo Lopes Dias não valorizava o trabalho de Rieli na TI Uru-Eu-Wau-Wau e das demais equipes que cuidam dos povos isolados. Os funcionários alegam que se o legado do Rieli fosse realmente respeitado, não haveria um missionário à frente da Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato, o qual possui como única experiência de trabalho indigenista a evangelização de povos indígenas.
Além da nota, outro motivo de críticas entre os funcionários da Funai é que, cerca de 15 dias após a morte de Rieli, a fundação publicou a Portaria 1.080 instituindo a “Galeria de Notáveis”, com o objetivo de homenagear servidores que vieram a óbito no desempenho de suas atribuições ou em atos “heróicos”. A avaliação é de que a Funai tenta, com isso, capitalizar apoio na sociedade ao passar um sentimento de pesar e prestígio com o respeitado sertanista.
Os servidores ouvidos pela coluna dizem que a melhor homenagem ao sertanista neste momento seria atender as reivindicações de melhorias funcionais pelas quais Rieli e demais coordenadores de índios isolados no país vêm pleiteando junto à direção da Funai.
Amazônia
As solicitações de melhorias vêm ocorrendo desde o começo da gestão Bolsonaro e, com a incidência do coronavírus no país, as preocupações com os povos indígenas só aumentaram. Além disso, há muitas reclamações em relação ao tratamento das equipes que atuam na Amazônia.
Em outro episódio, a coluna mostrou como a sala de situação criada pelo governo, por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), para tratar das medidas de proteção aos povos indígenas isolados contra o avanço do coronavírus, vem deixando de realizar as reuniões periódicas que deveria.
Processo
A coluna teve acesso a um processo que mostra repetidos esforços de coordenadores de índios isolados da Funai para tentar reverter exonerações e posturas da gestão de Marcelo Xavier contra as equipes que cuidam dos índios isolados na Funai.
Dentro do processo, um memorando de outubro de 2019 enviado ao presidente Marcelo Xavier, mostra 10 Coordenadores das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs) da Funai, incluindo Rieli Franciscato, demonstrando sua insatisfação com a notícia sobre a exoneração de Bruno da Cunha Araújo Pereira da Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato.
O indigenista chefiou a maior expedição para contato com índios isolados dos últimos 20 anos e sua saída teria acontecido por pressão de setores ruralistas e religiosos ligados ao governo.
Apesar do apelo dos coordenadores, que escreveram no memorando afirmando que Bruno Pereira, “além de reunir todos os requisitos necessários para o desempenho do cargo, foi e continua sendo avaliado pelos Coordenadores das FPEs como o quadro da Fundação mais indicado para exercer tal função”, a exoneração foi formalizada no dia 04 de outubro de 2019.
A exoneração gerou indignação dentro da Funai e, no mesmo dia, o coordenador Francisco Ribeiro Gouvea pediu dispensa da função de substituto da Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ).
No memorando, Francisco cita a saída de Bruno. “Eu e os servidores da FPEVJ recebemos consternados a notícia da exoneração do atual Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, Bruno Pereira, mesmo após a insistência dos coordenadores de FPEs em abrir diálogo com a alta gestão da FUNAI”, escreveu o servidor.
Alguns dias depois, onze coordenadores da Funai pediram uma reunião com a presidência da fundação para tratar da situação das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs).
Em resposta ao pedido, após protelar por semanas, o Gabinete de Marcelo Xavier pediu a indicação de apenas três nomes, alegando que não seria possível receber os 11 coordenadores “em razão do contingenciamento de recursos que têm sido enfrentado por esta Fundação e das limitações relativas à emissão de passagens e diárias”.
Durante a reunião, realizada em 12 de novembro de 2019, os coordenadores expuseram os avanços e entraves para execução dessa política pública e reapresentaram a pauta reivindicatória dos coordenadores, intitulada de “Agenda 2018”, onde apontam as fragilidades do trabalho como a falta de normatização do poder de polícia da fundação, o déficit de pessoal e recurso financeiros e a importância de manter equipes em campo nas Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs). Apesar de participar da reunião, o presidente Marcelo Xavier não cumpriu a maioria dos compromissos feitos no encontro.