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Gêmeos “idênticos”? Nem tanto!

Sim, é possível detectar diferenças entre DNA de gêmeos univitelinos

Por Salmo Raskin
Atualizado em 4 jun 2024, 16h36 - Publicado em 8 abr 2019, 14h19

Dois homens gêmeos idênticos foram condenados no último dia 21 pelo Juiz de Direito Filipe Luis Peruca, do Tribunal de Justiça de Goiás, a assumir simultaneamente a paternidade biológica de uma menina de 8 anos, residente em Cachoeira Alta (GO). O Juiz certamente enfrentou um dilema; é impossível que ambos os condenados sejam pais biológicos da criança, mas também não seria possível dizer qual dos dois é o pai, pois, até quanto se sabia, gêmeos “idênticos” possuem exatamente o mesmo DNA, e, portanto, um teste de DNA não conseguiria afirmar qual dos dois é o pai.

De fato, os dois supostos pais se submeteram a exames de DNA. Como gêmeos univitelinos, no entanto, o resultado do teste de DNA realizado foi inclusivo para ambos. Para o magistrado, um dos dois se beneficiou de semelhança física e genética com o irmão, de má-fé, para evitar responsabilidade com a filha. Este certamente não foi o primeiro caso no Brasil nem no mundo aonde tal situação complexa ocorreu, mas sim um dos poucos que se tornou público.

Em 2007 tornou-se público uma decisão judicial de um caso semelhante ocorrido nos Estados Unidos, envolvendo o Estado de Missouri e Holly Marie Adams vs. Raymon e Richard Miller. Neste caso, o teste de DNA realizado demonstrou que ambos os gêmeos, supostos pais, tinham um índice combinado de paternidade de 814.445, gerando uma probabilidade de paternidade de 99.999% admitindo-se uma probabilidade a priori de paternidade de 50%. As decisões nestes casos acabam sendo baseadas e em evidências não genéticas, com grande chance de que uma injustiça seja feita, com consequências para uma vida toda.

Mas você sabia que a ciência já dispõe de recursos para estabelecer com segurança quem é o verdadeiro pai biológico em casos assim?

Nos últimos cinco anos, o colossal avanço na capacidade de analisar mais profundamente o material genético, tem demonstrado com evidências científicas, que nem sempre gêmeos idênticos tem exatamente o mesmo DNA. E, sim, é possível identificar diferenças entre eles, que podem ser utilizadas na Medicina forense, seja na identificação de qual de dois gêmeos esteve presente na cena de um crime, seja na identificação da paternidade biológica entre gêmeos supostos pais.

  • O que são gêmeos “idênticos”?

Dois óvulos apresentam material genético diferente entre si, assim como dois espermatozoides. Gêmeos dizigóticos (“não-idênticos”) são gerados a partir da fecundação de dois óvulos por dois espermatozoides e, portanto, o zigoto, primeira célula resultante da fecundação, apresentará a mesma similaridade genética daquela entre irmãos não gêmeos, possuindo, em média, 50% de seus genes em comum, e podendo apresentar sexos iguais ou até discordantes, de acordo com a carga genética dos espermatozoides que fecundaram os respectivos óvulos. Nestes casos os gêmeos podem, inclusive, ter pais diferentes, se os óvulos forem fecundados por espermatozoides de homens diferentes.

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Mas quatro em cada mil nascimentos são de gêmeos monozigóticos, ou seja, cerca de 8 em cada mil homens serão gêmeos monozigóticos, por fatores ainda pouco conhecidos. Gêmeos monozigóticos ocorrem por uma divisão inesperada do zigoto gerado pela fecundação de um único espermatozoide por um único óvulo, quase sempre antes de nove dias após a fecundação, quando o embrião tem entre 40 e 150 células. Estes gêmeos monozigóticos, tem extrema similaridade de seu patrimônio genético e como são fecundados por um único espermatozoide que carrega ou um cromossomo X ou um Y, são sempre do mesmo sexo. Popularmente são chamados de “gêmeos idênticos”, inclusive porquê a aparência física em vida será, via de regra, muito semelhante (mas também não idêntica).

  • Como podem gêmeos oriundos da fecundação de um único óvulo por um único espermatozoide ter diferenças ao nível do DNA?

Para que uma célula se divida, ela tem que dobrar o seu genoma de 3 bilhões de bases nitrogenadas, para depois dividi-lo ao meio criando duas células-filhas com o DNA exatamente igual ao da célula que as deu origem. A Natureza faz este processo de forma rápida e altamente eficiente, mas pode copiar algumas letras bioquímicas erradas. Ciente disto, o próprio organismo tem uma maquinaria de reparo dos erros genéticos que podem ocorrer na divisão celular. Porém, com uma frequência bastante baixa, mesmo após a correção pela maquinaria de reparo, estes erros genéticos podem se perpetuar nas subsequentes divisões celulares.

Já se sabe a mais de uma década que erros genéticos ocorrem também nas divisões de zigotos provenientes da fecundação de um óvulo por um único espermatozoide, após a separação do embrião em dois zigotos, nas divisões independentes que ocorrerão em cada um deles por toda a vida intra e extrauterina. De especial interesse para o futuro reprodutivo destes recém-gêmeos monozigóticos, destacam-se algumas destas variantes genéticas; aquelas que serão transmitidas para a próxima geração, e que podem ocorrer em uma curta janela de tempo, logo após a separação do zigoto em dois, mas ainda antes de se iniciarem divisões celulares que darão origem a células de tecidos do corpo da pessoa que não serão utilizadas no futuro para formação de óvulos e espermatozoides.

Estas últimas variantes não serão transmitidas aos filhos. Em 98% dos casos as células do embrião já sofreram 7 divisões antes de se separar em dois embriões monozigóticos. A cada divisão, uma oportunidade para geração de novas variantes genéticas. Estas variantes no DNA que surgiram antes do zigoto se dividir em dois, estarão presentes, no futuro, no DNA dos dois gêmeos, e, portanto, não serão úteis para distingui-los futuramente ao nível do DNA. Entretanto, no final da segunda semana de gestação cerca de 15 mil células de cada um dos dois embriões terão sofrido mais 15 divisões independentes.

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São algumas destas variantes que podem ocorrer nestas divisões, que estarão, no futuro, presentes nos espermatozoides de um dos gêmeos monozigóticos, mas não do outro.  São essas novas variantes, geradas exatamente neste período embriológico, que os modernos testes de genética conseguem captar. Interessante que esta “janela embriológica” aonde estas ”mutações discriminantes” podem ocorrer, fazem com que elas possam estar presentes nos futuros espermatozoides dos gêmeos, também nas células da saliva deles, mas muitas vezes já não estão presentes nas células do sangue, aonde tradicionalmente os testes de DNA são feitos.

Identificadas estas ”mutações discriminantes” através de testes no esperma, saliva e sangue dos supostos pais gêmeos monozigóticos, e testando-as no sangue do filho(a) e de sua mãe, consegue-se, na maioria das vezes, discernir mesmo entre gêmeos monozigóticos, quem é o Pai e quem é o Tio paterno. A análise do DNA da mãe serve quase como um controle, para comprovar que estas ”mutações discriminantes” não foram herdadas da mãe.

  • Testes tradicionais não conseguem detectar diferenças tão sutis entre o DNA de gêmeos monozigóticos

Os testes de DNA para determinação de paternidade utilizados rotineiramente há quase 30 anos, provocaram uma verdadeira revolução na capacidade de discriminar indivíduos que são, daqueles que não são os pais biológicos de alguém, fazendo com que outras provas circunstanciais fossem colocadas em segundo plano. Importante enfatizar que os Testes de DNA tradicionais são absolutamente seguros e eficientes.

Uma das pouquíssimas limitações da tecnologia do DNA na determinação da paternidade biológica era justamente nos casos em que supostos pais são gêmeos monozigóticos. Importante ressaltar que mesmo nestes casos, aonde os testes de DNA tradicionais realmente não conseguem encontrar “as diferentes agulhas nos dois palheiros genéticos dos gêmeos”, eles conseguem ao menos excluir ambos os gêmeos monozigóticos de serem os pais biológicos (caso realmente não sejam) ou conseguem concluir que um dos dois gêmeos (e mais nenhum outo homem) é o pai biológico (caso realmente um dos dois seja o pai biológico).

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Em 2012, o pesquisador alemão Michael Krawczak já havia previsto teoricamente que assim que uma nova geração de tecnologia do DNA estivesse disponível, seria possível resolver inclusive estas disputas de paternidade (ou criminais) entre gêmeos monozigóticos, em mais de 80% das vezes demonstrando ao menos uma única letra bioquímica genética diferente entre eles, e em cerca de 53% das vezes demonstrando diferença de ao menos duas letras bioquímicas genéticas entre eles, sendo a segunda situação ainda mais segura quanto ao resultado do exame do que a primeira.

Aqui cabe ressaltar que como o “teste tradicional de DNA” já assegura previamente que apenas um dos gêmeos monozigóticos (e mais nenhum homem) é o pai biológico da criança, mesmo a detecção de uma única letra bioquímica diferente entre os gêmeos já tem enorme valor discriminatório, diferente dos casos de determinação de paternidade habituais em que se exige ao menos duas ou três diferenças para concluir pela exclusão de paternidade.

Caso o teste de DNA “tradicional” aponte com segurança que que um dos dois gêmeos (e mais nenhum outo homem) é o pai biológico, pode-se dar continuidade ao exame usando técnicas mais modernas de análise do DNA, chamadas de “sequenciamento de última geração com profunda cobertura do genoma”, aonde as 3 bilhões de letras bioquímicas de todo o genoma serão determinadas e analisadas, e não apenas 10-20 locais do genoma que são tradicionalmente analisados  e suficientes para resolver casos mais simples de identificação biológica.

Além desta análise muito mais ampla, as novas tecnologias de análise do DNA permitem analisar todo o genoma repetindo o sequenciamento por mais de 50-100 vezes na mesma amostra, o que aumenta a eficácia e a confiabilidade da detec��ão de raras ”mutações discriminantes”. Estes avanços foram elegantemente demonstrados em 2014 por um grupo de pesquisadores alemães liderados por Jacqueline Weber-Lehmann, quando publicaram no periódico científico “Forensic Science International” um relato de caso selecionado pelos próprios autores, de gêmeos monozigóticos, no qual, porem, não havia qualquer dúvida sobre qual deles era o pai biológico da criança. Foi possível detectar 5 novas variantes genéticas discriminatórias, presentes em um dos gêmeos e não no outro, não presentes na mãe da criança e presentes na criança  (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=finding+and+needle+and+haystack+differentiating+identical+twins), demonstrando a eficácia da nova técnica.

  • Já há evidência estatística para auxiliar os Peritos e os Juízes nestes casos. O obstáculo não é mais técnico-científico, mas sim financeiro.
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Em artigo científico publicado em Dezembro de 2018 na prestigiosa revista científica PLOS Genetics, o geneticista Michael Krawczak e sua equipe desenvolveram análises estatísticas para o cálculo da probabilidade de Paternidade nesta situação em que poucas diferenças ao nível do DNA poderão ser encontradas entre gêmeos monozigóticos. A partir daí os laboratórios equipados com esta tecnologia de ponta já podem oferecer tais análises.

Mas aí chegamos ao obstáculo que talvez seja maior do que o científico, visto que este último acaba de ser ultrapassado; Pela complexidade das análises necessárias, pela tecnologia de última geração a ser utilizada, pela necessidade de que quatro pessoas sejam testadas (mãe, filho (a) e dois supostos pais), e pela importância de realizar os exames não só no sangue, mas também na saliva e espermatozoide dos supostos pais gêmeos, o custo deste tipo de analise no Brasil pode chegar a cem mil Reais, ao passo que um teste em uma situação mais trivial (mãe, filho(a) e um suposto pai) custa em torno de cem vezes menos.

Apesar de que são casos raros, quem vai assumir esta conta? O Estado brasileiro? O Ministério Público? Todas as partes envolvidas? Quem solicitou a prova pericial? O Estado paga o laboratório e depois do resultado cobra do pai biológico? Ou devido ao alto custo do sofisticado exame os casos devem ficar sem solução? Ou deve-se atribuir a paternidade a dois homens, sabendo que um está sendo injustiçado?

A nova geração de técnicas de análise do DNA possibilitou mais uma quebra de paradigma, o de que não é possível diferenciar o DNA entre gêmeos “idênticos”. As poucas, mais importantes mutações somáticas pós-zigóticas que surgem logo após a separação do embrião em dois, podem ser agora diferenciadas, inclusive em casos criminais aonde amostras biológicas como gotas de sangue, pele, cabelo, esperma ou saliva são deixadas nas cenas de crime.

Os gêmeos idênticos sempre intrigaram a humanidade, como fonte de superstição e fascinação, desde os bíblicos Jacó e Esaú até os mitológicos fundadores de Roma, Rômulo e Remo. Com o avanço das técnicas de análise de DNA, mesmo entre gêmeos idênticos, a partir de agora Pai é Pai, Tio é Tio!

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Salmo Raskin
(Gilberto Tadday/VEJA)

 

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