O mistério da cloroquina americana
Brasil recebeu 2 milhões de doses. O embaixador dos EUA havia dito que Brasília pediu. Ontem, o ex-chanceler afirmou que Washington ofereceu. Alguém mentiu

Era noite de domingo, 31 de maio do ano passado, quando o Itamaraty e a Embaixada dos Estados Unidos anunciaram: “O governo dos EUA entregou dois milhões de doses de hidroxicloroquina (HCQ) para a população do Brasil.”
Na CPI da Pandemia ainda não se conseguiu desvendar o mistério da origem dessa carga de cloroquina americana, se foi a pedido do governo Jair Bolsonaro ou oferecimento do governo Donald Trump.
Ontem, o senador Renan Calheiros, relator da comissão, perguntou ao ex-chanceler Ernesto Araújo:
— Essa entrega foi feita por solicitação de alguma autoridade brasileira ou surgiu de uma oferta de autoridade americana?
— Foi um oferecimento de autoridades americanas — respondeu o ex-ministro das Relações Exteriores.
O relator quis saber: — O Ministério da Saúde participou da decisão de solicitar ou aceitar esses medicamentos?
— De solicitar, pelo que me consta, não houve uma solicitação brasileira — insistiu Araújo, acrescentando: — Mas o Ministério da Saúde foi comunicado, inclusive fez o desembaraço aduaneiro da doação quando chegou ao Brasil.
O problema do ex-chanceler está nos fatos, e, neles, eventuais delitos de responsabilidade política e administrativa.
Na quarta-feira 3 de junho, 72 horas depois do anúncio, o embaixador americano Todd Chapman disse em entrevista à Rádio Gaúcha, de Porto Alegre, que a doação havia sido feita a pedido do governo brasileiro:
— É uma forma de ajudar o Brasil a combater a pandemia, esse inimigo invisível — comentou o embaixador. — Nós vamos seguir ajudando, pois [a remessa] é uma resposta ao pedido do Brasil. Há interesse do governo brasileiro no medicamento.
Na época, sobrava hidroxicloroquina nos EUA. Semanas antes, suspendera permissões para eventual uso desse tipo de medicamento no tratamento da Covid-19.
A Organização Mundial de Saúde interrompera testes por ineficácia do remédio e riscos para os doentes.
A revista médica, The Lancet, já havia publicado estudo mostrando a inexistência de benefícios comprovados na aplicação de cloroquina ou hidroxicloroquina sozinhos, ou combinados com antibióticos como azitromicina, em terapia de doentes infectados pelo novo coronavírus.
O governo Donald Trump não sabia o que fazer com os estoques do remédio, até que o Brasil apareceu no balcão da diplomacia americana.
Na época, o embaixador dos EUA disse que Brasília pediu. Ontem, o ex-chanceler Araújo afirmou e repetiu na CPI, sob juramento, que Washington ofereceu.
Alguém mentiu, é certo.
Entretido com a cloroquina, o governo Bolsonaro perdeu o controle da pandemia e segue aprisionado na escassez de vacina. O país ultrapassa 440 mil mortos, e a contagem continua crescente.