Bolsonaro enfrenta consequências reais da realidade paralela
Insistência na realidade alternativa já tem efeitos reais para o governo, acusado de manter estruturas paralelas na Saúde, na espionagem e no orçamento
Jair Bolsonaro é prova viva do conceito de “definição de situação”, formulado pelo sociólogo americano William Isaac Thomas no início do século passado: “Se os homens definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências.”
Nos últimos 29 meses, Bolsonaro fomentou a percepção de que governa numa realidade paralela. Nela, por exemplo, o Brasil ocupa a “vanguarda” nas soluções para a vida sob pandemia, porque ele foi, como já disse, o único chefe de Estado do planeta que saiu em busca “do remédio” — no caso, a cloroquina.
Se a ilusão é percebida como algo real, mesmo não sendo, tem as mesmas consequências que a realidade — diz o teorema de Thomas.
Ontem no Palácio do Planalto começou a se espraiar o entendimento de que o governo está cada vez mais enredado na própria criação, a realidade paralela.
As consequências já estavam visíveis no prédio do outro lado da rua, no Senado, no acervo de 1,5 terabytes de documentos acumulados pela CPI da Pandemia em mês e meio de funcionamento.
Agora, também, começam a ganhar contornos definidos em outro prédio da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal. Ontem à tarde, a juíza Rosa Weber escreveu: “A eventual existência de um Ministério da Saúde Paralelo, desvinculado da estrutura formal da Administração Pública, constitui fato gravíssimo.”
O desenho de um “gabinete” ou “ministério” paralelo de Bolsonaro na pandemia emergiu da documentação e dos depoimentos tomados pela CPI ao reconstruir o processo de tomada de decisões no governo, que determinou, entre outras coisas, a opção preferencial pela cloroquina em vez da vacina.
Um dos homens do presidente mais atuantes nessa estrutura informal de governo teria sido o empresário paranaense Carlos Roberto Martins, 64 anos, que fez fortuna com uma franquia de escolas de inglês nos anos 90. Entusiasmado com o próprio sucesso, Martins incorporou a marca comercial ao próprio nome, e se tornou Carlos Wizard Martins.
Ele foi convocado para depor hoje na CPI, que justificou: “Os depoimentos colhidos até o presente momento, somados às informações e aos documentos disponibilizados, apontam a possível existência de um ‘ministério paralelo da saúde’, que defendia a utilização de medicação sem eficácia comprovada e apoiava teorias como a da imunidade de rebanho, tendo como um de seus financiadores o Sr. Carlos Wizard Martins.”
Tentou escapar, e recorreu ao Supremo. A juíza Weber registrou a informação da CPI sobre indícios de que Wizard mobilizou “recursos financeiros para fortalecer a aceitação das medidas que o presidente da República julgava adequadas, mesmo sem qualquer comprovação científica”.
Se comprovado, escreveu, o empresário teria “concorrido diretamente para utilização de medicamento sem comprovação científica de eficácia e, por consequência, influenciado no agravamento da situação pandêmica.”
Diante da “causa provável”, rejeitou o pedido de Wizard para não comparecer à CPI. Horas depois, em novo recurso, ele conseguiu o direito de não falar, se quiser, sobre fatos específicos que possam ser usados para incriminá-lo.
Quando a juíza Weber assinou o despacho, no Congresso avançava a discussão sobre outros aspectos da realidade paralela bolsonarista.
No Senado, o ex-governador do Rio Wilson Witzel falava à CPI sobre uma estrutura informal de espionagem política, conhecida pelos parlamentares como “Abin Paralela”.
Na Câmara, alguns deputados oposicionistas coletavam assinaturas para a abertura de uma CPI do Orçamento Paralelo, com o objetivo de investigar o acordo entre Bolsonaro e líderes do Centrão beneficiados com R$ 17,5 bilhões em verbas provenientes emendas parlamentares.
A insistência na realidade alternativa já tem consequências políticas reais para o governo Bolsonaro, acusado de manter estruturas paralelas na Saúde, na espionagem e até no orçamento