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Por Coluna
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“Nada Ortodoxa” e “Shtisel”: a vida entre os ultra-religiosos

Em duas séries disponíveis na Netflix, a dificílima acomodação (ou ruptura) de uma garota e de um rapaz ao judaísmo mais dogmático

Por Isabela Boscov Atualizado em 1 abr 2020, 18h43 - Publicado em 1 abr 2020, 18h26

Um tempo atrás, descobri em um canto qualquer da Netflix a série israelense em duas temporadas Shtisel, que trata de Akiva, um rapaz de 20 e poucos anos de uma família ultra-ortodoxa de Jerusalém, e das pessoas à volta dele. Mais especificamente, Akiva é haredi, uma corrente do judaísmo que prega absoluta fidelidade aos preceitos religiosos e na qual, para os homens, não há honra nem privilégio maior do que dedicar a vida ao estudo dos textos fundamentais, o Talmud e a Torah, e debater até as mínimas filigranas a lei judaica. Mas Akiva é o caçula da família; foi o mais mimado, tem um temperamento artístico – ele pinta, algo que só é aceito dentro de regras muito rigorosas –, é meio romântico e um tanto confrontador e, eis a questão central, não se casou ainda porque está à espera de sentir aquele algo mais por uma mulher antes de se comprometer. Akiva, porém, não pode flertar nem namorar: só pode conhecer jovens mulheres por intermédio do casamenteiro da comunidade, depois que os pais das moças concordam que um encontro aconteça – uma mera conversa em algum lugar público e respeitável. Além disso, espera-se que o rapaz e a moça decidam se querem casar-se com base apenas nesse breve contato. O pai de Akiva não para de arrumar encontros para ele, porque é uma vergonha que nessa idade seu filho ainda não se tenha casado e começado uma família. Mas Akiva desconversa, adia, remancha, finge que não é com ele. Quando se decide por uma candidata, provoca escândalo: o rabino a considera inadequada.

Shtisel
Shtisel (- Netflix/Divulgação)

Shtisel é uma novela mansa e afetuosa, mas nem por isso menos franca e perturbadora na maneira como mapeia os fluxos e refluxos dos personagens que, por motivos variados, estão experimentando algum tipo de ruptura com as exigências de seu estilo de vida. Ao redor de Akiva, os problemas são os mesmos de todas as pessoas do mundo, mas vêm duramente complicados pela questão da severidade religiosa. O pai, viúvo, sente falta da convivência com uma mulher; primeiro enrola outra viúva, depois calcula muito mal suas chances com uma mulher mais jovem. O irmão mais velho se sente um fracassado, o que afeta todas as áreas da sua vida; a irmã tem já uma fileira de filhos e um marido que entrou em crise, abandonou-a e foi viver uma vida profana. Para esconder essa humilhação, ela se arrisca para trazer algum dinheiro para casa, cujas responsabilidades acabam recaindo todas sobre a filha mais velha, Ruchama, que mal entrou na adolescência e é talvez a personagem mais complicada de toda a série. Michael Aloni, que interpreta Akiva, é um ator caloroso, cativante e extremamente persuasivo. E Shira Haas, que faz Ruchama, é formidável: diminuta, com um rosto muito delicado, mas tensa como uma corda de violino e reativa ao menor estímulo.

Shtisel
Shtisel (- Netflix/Divulgação)

De onde não demorei nem um dia para começar a ver Nada Ortodoxa: vi o rosto de Shira Haas na foto do carretel da Netflix e imediatamente mergulhei nessa minissérie em quatro episódios sobre Esther, uma garota de 19 anos que, já na primeira cena, é a imagem do desespero. Está quase para começar o Shabbath, o horário sagrado que vai do poente da sexta-feira ao sábado. Com o coração na boca, Esther caminha rápido, esgueirando-se para não ser vista, até o apartamento de uma amiga, onde pega dinheiro, passagem e passaporte; ela tem de correr para o aeroporto antes que sua ausência ao jantar do Shabbath seja notada. Esther faz parte da comunidade hassídica Satmar de Williamsburg, no bairro nova-iorquino do Brooklyn – também ela ultra-ortodoxa, mas de uma corrente mais mística, estabelecida no pós-guerra por judeus de origem húngara que haviam sobrevivido ao Holocausto. Os hassidim de Williamsburg são, portanto, um grupo marcado pelo trauma do genocídio, e esse trauma inspira muito da maneira como vivem. Por ironia, é para Berlim, o centro de onde o nazismo irradiou para a Alemanha, que Esther decide fugir (há razões para tal).

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Nada Ortodoxa
Nada Ortodoxa (- Netflix/Divulgação)

Quanto mais se conhece de Esther, mais claro fica que ela foi sempre um elemento diferente nesse meio: tanto por carregar a pecha de ter sido abandonada por uma mãe que largou o marido e deu as costas à comunidade e à religião, como por temperamento. Nada Ortodoxa se baseia nas memórias da escritora americana Deborah Feldman, que também é coprodutora e co-roteirista e, como a protagonista, fugiu para Berlim para escapar de um casamento infelicíssimo e da interferência cada vez mais sufocante da comunidade em sua vida pessoal. Fugiu, também, porque tudo aquilo que ela imaginou ser a solução para o seu estranhamento – casar-se, ser aceita, ter filhos, pertencer – só redobrou os problemas: a verdade é que ela sempre precisara descobrir quem era realmente, e em Williamsburg isso seria impossível. Não é que Esther queira fugir; ela precisa fugir, ou não vai sobreviver.

Nada Ortodoxa
Nada Ortodoxa (- Netflix/Divulgação)

Nada Ortodoxa é uma produção alemã, muito bem escrita e bem dirigida, e acompanha Esther sem apressá-la: é a personagem que dita o ritmo, oscilando entre o fascínio e o medo por esse mundo totalmente novo no qual ela não faz ideia como existir. Os flashbacks que mostram como Esther chegou à decisão da fuga são riquíssimos em detalhes fidedignos do dia a dia e dos rituais dos Satmar e aderem com fidelidade à história da própria Deborah Feldman; já os trechos a partir de sua chegada a Berlim são uma reimaginação bastante livre do que se passou com ela. Há dois outros personagens sensacionais, além da própria Esther: Yanky (Amit Rahav), o marido ingênuo e despreparado que ela abandonou, e Moische (Jeff Willbusch) o primo truculento, e com vários dramas próprios em relação à religião, que acompanha Yanky até Berlim para tentar encontrar Esther e arrastá-la de volta a Nova York. Israelense de nascimento e radicado na Alemanha, Jeff Willbusch é uma potência em cena, e tem uma história que lembra muito a de Esther: veio de uma comunidade Satmar de Jerusalém e, caso raríssimo na Israel de hoje, o iídiche que domina quase todos os diálogos de Nada Ortodoxa é a sua primeira língua – só os mais idosos ainda falam o velho dialeto dos judeus europeus e só comunidades como os Satmar ainda o mantêm vivo; no geral, os judeus das novas gerações não são muito simpáticos a um idioma tão associado à perseguição.

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