Crônica do luto.
Nanni Moretti confronta a platéia com a pior dor possível no belo O Quarto do Filho.
Desde o início de sua carreira, o italiano Nanni Moretti tem sido comparado a Woody Allen. Como o americano, Nanni escreve, produz, dirige e protagoniza todos os seus filmes — sempre comédias —, interpretando personagens que são versões mais ou menos ficcionalizadas de si mesmo. Como Woody também, o italiano tende a mostrar-se sob a luz da ironia e usa as próprias manias, queixas e indagações como ponto de partida para seus roteiros. Não à toa, seu filme mais conhecido fora da Itália é Caro Diário, no qual Nanni descortinava seus pontos favoritos de Roma a bordo de uma lambreta, debatia sobre críticos de cinema e mostrava como uma coceira insistente o levara a descobrir que tinha um linfoma. Já o público italiano prefere Palombella Rossa (“Pombinha Vermelha”), em que Nanni usava um jogo de pólo aquático — ele é fanático pelo esporte — para comentar o descarrilhamento de um de seus maiores objetos de amor e ódio, o Partido Comunista Italiano.
O fato, porém, é que quaisquer semelhanças entre Woody e Nanni são puramente superficiais. Intelectual e esquerdista de segunda geração, o cineasta italiano é antes de tudo um cronista. Sua figura não é o centro em torno do qual giram seus filmes — como no caso de Woody Allen —, mas uma espécie de tela na qual seu tempo e seu mundo se refletem. Nesse sentido, o drama O Quarto do Filho é um exemplo fiel de seu cinema. No filme, Nanni interpreta um psicanalista realizado em todos os sentidos. Ouve seus pacientes com distância profissional, tira grande prazer de suas corridas matinais e das pessoas que observa na rua e, em casa, tem uma convivência afetuosa e harmoniosa com a mulher, o filho e a filha, ambos adolescentes. É, em suma, uma vida completa, que Nanni retrata com seu humor habitual.
Do sentido total, contudo, passa-se imediatamente para a absoluta ausência deste. O filho morre num acidente, e a família submerge na maior dor que um ser humano é capaz de sentir. Numa seqüência magnífica, a que antecede a tragédia, Nanni mostra como cada momento da vida é cercado de infinitas oportunidades de morte e como, justamente por isso, essa é a possibilidade que nunca se contempla. É dessa crônica, a do luto, que Nanni se ocupa então. Separar uma roupa para o morto, ver os operários parafusando a tampa do caixão, ter de acordar na manhã seguinte numa casa em que há um quarto vazio, fazer comida, ir à escola, retomar o trabalho: é um pesadelo ambientado num mundo que retém apenas a aparência do que sempre foi. Nanni, porém, não pára esse mundo para que o drama se desenrole no centro do palco, e é isso o que torna seu filme tão verdadeiro e tão devastador. Qualquer que seja a magnitude da dor de quem sobrevive, não há outro remédio senão prosseguir.
É por esse caminho penoso que Nanni conduz a platéia. Mas faz questão de levá-la até o momento em que pai, mãe e irmã sobem à tona para respirar pela primeira vez. Não o faz para provocar uma catarse, mas para reafirmar aquele que tem sido sempre o seu maior princípio: o de que a vida e as suas possibilidades, ruins e boas, sempre se impõem.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 20/02/2002
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2002
O QUARTO DO FILHO(La Stanza del Figlio)Itália/França, 2001Direção: Nanni MorettiCom Nanni Moretti, Laura Morante, Jasmine Trinca, Giuseppe Sanfelice