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Mad Max: Estrada da Fúria

Por Isabela Boscov Atualizado em 30 jul 2020, 23h42 - Publicado em 17 jan 2016, 14h00

Para mim, ele continua sendo o nº 1.

O blog ainda não existia quando Mad Max foi lançado nos cinemas, em maio de 2015, e alguns leitores têm pedido uma resenha do filme – ainda mais agora que o páreo do Oscar de melhor filme parece estar mesmo dividido entre ele e O Regresso.

Bom, já vi o filme de Alejandro Iñárritu, e há muito o que elogiar nele. Mas prossigo firme na opinião de que Mad Max é o melhor candidato. Segue aqui, então, a resenha feita a quente, em maio. E leia também aqui uma longa entrevista com esse cavalheiro que é George Miller, que pôs o despertador para o meio da madrugada para, da Austrália, conversar comigo ao telefone durante uma hora.


Metal pesado

No estrondoso Mad Max: Estrada da Fúria, o diretor australiano George Miller pisa no acelerador para redefinir o que é um filme de ação: uma anarquia meticulosamente coreografada de movimento, deslocamento, velocidade, atrito e colisão.

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O negócio é aproveitar para respirar bem fundo e encher os pulmões durante a primeira cena, em que Max Rockatansky, ex-policial e sobrevivente do apocalipse, é visto ainda de costas, mirando o interminável deserto à sua frente: em questão de segundos, o diretor George Miller vai enfiar o pé no acelerador, e daí não vai sobrar mais um instante sequer para recuperar o fôlego, mudar de posição na poltrona ou pensar em outra coisa que não seja a escalada de ação que Miller orquestra com uma agilidade, uma contundência e uma potência impossíveis de descrever. Há 36 anos, esse australiano largou a carreira de médico de pronto-­socorro para fundar o filme pós-apocalíptico como o conhecemos hoje: feito por uma ninharia (pouco mais de 300 000 dólares) e estrelado por um então desconhecido de impressionante presença física e olhar atarantado – Mel Gibson –, Mad Max instantaneamente chacoalhou o establishment cinematográfico, e perdura até hoje como um dos filmes mais influentes da história. Miller abandonou os cenários de fim de mundo após as continuações Mad Max 2: a Caçada Continua, de 1981, e Mad Max – Além da Cúpula do Trovão, de 1985: dava como certo que o assunto estava, para ele, encerrado, e foi fazer outras revoluções com os dois Babe – O Porquinho e os dois Happy Feet. Mas, alguns anos atrás, Max voltou a assombrá-lo. O diretor retorna então agora à sua criação original com Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, Austrália, 2015), já em cartaz no país. É o caso de arriscar uma previsão: nunca mais – de novo – o filme pós-­apocalíptico vai ser o mesmo. Com uma energia inesgotável, Miller ao mesmo tempo sedimenta e reinventa tudo o que criou. Na verdade, redefine o que é a ação cinematográfica: uma anarquia meticulosamente coreografada de movimento, deslocamento, velocidade, atrito e colisão que, como observou a revista americana Slant, só pode ser resumida a contento pela categoria muito bem-humorada formulada pelo crítico Stuart Klawans: é “filme para quem quer morrer de tanto cinema”. Klawans bolou essa definição no fim dos anos 90. Mal sabia ele o que ela de fato pode significar.

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Assim que Max se vira para a câmera, naquela primeira cena, Estrada da Fúria engata uma perseguição contínua, que se estenderá por três dias (ou duas horas de projeção) virtualmente sem pausa: interpretado por Tom Hardy (o Bane de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge) com uma força implosiva que quase não fica a dever à de Mel Gibson, Max será capturado pelos War Boys – uma espécie de escória genética que restou da devastação planetária – e levado à Cidadela para servir de banco de sangue a esses rapazes que compõem o exército do tirano Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, que foi também Toecutter, o vilão-­mor do Mad Max original). Ainda mais deformado que seus soldados, Immortan Joe controla a Cidadela por meio da força, do medo que instila e sobretudo da água, que cede ou recusa conforme sua vontade: se a crise do petróleo era o elemento contemporâneo que, na virada dos anos 70 para os 80, Miller usava para desenhar um futuro brutal, aqui ele explora a ideia de um mundo privado de um recurso ainda mais precioso.

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Enquanto Max tenta escapar das cavernas da Cidadela, Immortan Joe está despachando um comboio capitaneado por Imperator Furiosa (Charlize Theron, um colosso) para buscar combustível em Vila Gasolina e munição em Cidade da Bala. Mas, a meio caminho, Furiosa desvia da rota: ela está, na verdade, contrabandeando uma carga muito cara a Immortan Joe para um lugar distante, onde essa carga possa viver a salvo. Assim que percebe a traição, Immortan Joe manda suas divisões de guerra atrás de Furiosa; Max vai junto, acorrentado ao para-­choque de um tanque e ligado ao war boy Nux (Nicholas Hoult) por uma sonda intravenosa. No correr dos três dias seguintes, Furiosa, Max e Nux vão ora se opor, ora se unir, enquanto as patrulhas que os perseguem crescem em número e cólera.

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Em entrevista a VEJA, George Miller disse que, desde o primeiro Mad Max, sua proposição é reduzir a gramática cinematográfica ao que ela tem de mais essencial e também mais universal: tempo e movimento. Mas as revoluções tecnológicas das últimas décadas dão agora a ele a oportunidade de combinar esses elementos com um grau de inovação – e de ferocidade – imprevisto. Estrada da Fúria é ação real protagonizada pelos próprios atores em veículos reais e paisagens verdadeiras – a imensidão do Deserto da Namíbia, para onde a gigantesca máquina da produção teve de se deslocar quando o deserto na Austrália que seria usado como locação floresceu inesperadamente após uma enchente. É também ação de altíssima octanagem, filmada de dentro da cena, junto do caos, e tão palpável e violenta que chega a ser estremecedora. O que há de efeito digital em cena não passa de retoque – por exemplo, para criar o braço amputado de Furiosa ou apagar as rédeas que prendiam os atores aos carros e caminhões, providência necessária para que ninguém terminasse esmagado debaixo das centenas de rodas. A máscara horrenda com que Immortan Joe ao mesmo tempo esconde sua desfiguração e realça seu terror, as cicatrizes e pústulas dos War Boys, as deformidades repulsivas dos tiranos de Vila Gasolina e Cidade da Bala, que se juntam com suas hordas à perseguição – nada é computação gráfica, tudo é prótese, maquiagem e expressão corporal, para acentuar o pesadelo e a anomalia desse mundo até quase o intolerável.

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Aqui é o caso de dizer que Miller, de 70 anos, é uma pessoa de gentileza e serenidade extraordinárias, que se expressa com circunspecção e delicadeza – não é o que se imaginaria, portanto, do criador de um universo cruel como o de Mad Max. (Para efeito de ilustração, no último festival Comic-Con ele ficou tão aturdido e magoado com um comentário maldoso sobre Mel Gibson que perdeu o fio da meada e quase não conseguiu retomar a entrevista que estava dando.) De certa forma, porém, Miller é o criador, mas não o pai, desse universo: é o cronista de um futuro possível, ainda que muito extremo, nascido diretamente do presente. Do que o presente tem de ruim, sem dúvida: a manipulação da escassez de água por interesses espúrios, a selvageria das relações humanas, o tráfico sexual, a exploração em condições escravagistas de populações desfavorecidas, as distorções da obsessão genética deste tempo – todos esses tópicos estão fartamente representados em Estrada da Fúria, e com inquietação ainda maior do que a que animou o trabalho de Miller até aqui. A ótica de Miller, porém, é contemporânea no melhor sentido da palavra: está no seu respeito genuíno pela inocência e generosidade de Nux, pelo estoicismo de Max, pela obstinação e integridade de Furiosa. Está sobretudo aí, na preponderância que Furiosa assume na trama. Ela é o motor; Max é só as rodas. Assim, além de revisitar, reinventar e redefinir o filme de ação, Miller ao final o eviscera: em Estrada da Fúria, o desgoverno é masculino, e a nova ordem, feminina.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 20/05/2015
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2015


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