Não confunda Lady Macbeth, que está estreando nos cinemas, com o seu costumeiro filme de época, aquele em que dramas íntimos se desenrolam entre boas maneiras e belos objetos de cena: num desempenho feroz, a atriz inglesa Florence Pugh, de 21 anos, encarna uma das personagens mais atordoantes já imaginadas por um escritor do século 19 – no caso, o russo Nikolai Leskov, que publicou em 1865 a escandalosa novela Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk como uma espécie de denúncia dos males que afligiam uma Rússia cuja ordem social não ia para a frente (entre os quais a ignorância, a semi-escravidão no campo e o tratamento das mulheres como propriedade sem valor nem consequência).
Nesta versão do diretor inglês William Oldroyd, transposta para a Inglaterra do mesmo período, a protagonista Katherine é vendida pela família junto com suas terras, trancafiada em casa e tratada de forma aviltante pelo marido e pelo sogro, negociantes ricos porém dissolutos e grosseiros. Entre as várias degradações que Katherine enfrenta, estão a proibição de pôr o pé no jardim da casa que seja, e a obrigação de todo dia arrumar-se a rigor e permanecer horas sentada à mesa ou à sala, como se fosse apenas mais um ornamento da casa. Ela sente tanto tédio que adormece onde estiver. E, como não engravida – nem poderia, dado que na noite de núpcias o marido a olhou nua, virou para o outro lado e nunca mais se interessou por ela –, sua posição como senhora da propriedade é extremamente frágil. Katherine está tão para trás na hierarquia da casa que até a empregada negra (Naomie Ackie), amealhada no tráfico de escravos, aproveita-se da hora de escovar os cabelos da patroa, ou de apertar seu espartilho, para praticar mal disfarçadas agressões. (Não há, aqui, o otimismo de imaginar que duas mulheres oprimidas se uniriam contra seus opressores; a empregada sabe muito bem para que lado o vento sopra – e definitivamente não é para o lado de Katherine. Além disso, há um elemento de rivalidade sexual entre elas.)
Durante uma ausência prolongada do marido e do sogro, porém, Katherine impulsivamente se envolve com Sebastian (Cosmo Jarvis), trabalhador da fazenda, e algo desperta dentro dela com violência inaudita: ela não mais admite abrir mão do desejo e da oportunidade de ser dona de si. Katherine vai chegar a extremos impronunciáveis para garantir sua independência – e o último de seus gestos nesse sentido é tão extremo que parece quase impossível que Leskov tenha conseguido publicar uma novela em que a lógica do “bicho come o bicho que não o come” é levada até tais consequências. O diretor William Oldroyd, felizmente, preserva essa lógica: atendo-se ao mínimo nos cenários e figurino, aparando a narrativa até a carne e apoiando-se no desempenho formidável de Florence Pugh, ele conduz com firmeza enregelante o enredo de temperatura altíssima. Um filmaço, enfim.
P.S.: Talvez você já tenha ouvido falar da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, que às vezes ganha uma ou outra montagem muito celebrada. A história é a seguinte: quando o compositor Dmitri Shostakovich adaptou a novela de Leskov em forma de ópera, em 1934, ele deu um jeito de relativizar o terrível gesto final de Katherine – mas mesmo assim Stalin tratou de proibir quase que imediatamente a encenação. Ingênuo, Shostakovich quis celebrar o ideal do “novo homem” produzido pelo comunismo, e presumiu que ele valeria também para as mulheres. Pois recebeu um recado bem claro de que não havia “novo homem” coisa nenhuma – e isso de uma “nova mulher”, especialmente, estava fora de cogitação.
Trailer
LADY MACBETH Inglaterra, 2016 Direção: William Oldroyd Com Florence Pugh, Cosmo Jarvis, Naomie Ackie, Paul Hilton, Christopher Fairbank Distribuição: Califórnia |