‘Homecoming’ lidera a nova ficção sobre um futuro próximo – e incômodo
Na segunda temporada, a série imagina os desdobramentos das obsessões contemporâneas e do nosso estado de desconexão
A mulher acorda em um bote no meio de um lago. Não sabe quem é nem como foi parar lá; na margem, um homem a contempla, mas, quando ela põe os olhos nele, o desconhecido foge. Filmada no sol baixo do fim de tarde, ao som de uma trilha inquietante que cita explicitamente a música de Bernard Herrmann para os filmes de Alfred Hitchcock, a cena inicial da segunda temporada de Homecoming (Estados Unidos, 2020), já disponível na Amazon Prime Video, apresenta uma premissa que é também ela característica do mestre do suspense: a do protagonista para o qual tudo — neste caso, até a própria identidade — é um enigma a ser decifrado. A julgar pelos documentos que carrega, a mulher interpretada pela pop star Janelle Monáe se chama Jackie e é ex-militar. Levada a um hospital, ela descobre uma marca de injeção na veia do braço; será uma viciada? Ela ignora também quem seria o homem com quem passou a tarde anterior bebendo em um bar. No quarto de motel que o sujeito ocupou, ela encontra um melão(!), um maço de dinheiro, uma foto em que ela aparece na companhia de outros soldados e um frasco retirado de um laboratório. Nada faz sentido. Mas a sintaxe das cenas, que o diretor Ryan Patrick Alvarez cuidadosamente toma emprestada de Hitchcock, avisa: tudo se liga, e o fio que une esses elementos é o frasco de medicamento — uma espécie de elixir de bem-estar que, em alta dose, apaga a memória e até o senso de self (a percepção de si mesmo, na definição freudiana).
Há aí, claro, uma alegoria sobre o uso indiscriminado dos fármacos antiansiedade, antidepressão e antidor. Mas ela é só uma pequena peça no painel maior da série: o desassossego com um modo de vida tornado tão sem balizas que nos aliena não só do meio, mas de nós mesmos. Desde a primeira temporada, em que a garçonete interpretada por Julia Roberts reconstruía penosamente a lembrança dos anos em que coordenara um experimento de reabilitação de combatentes traumatizados, a série criada por Micah Bloomberg e Eli Horowitz e produzida pelo Sam Esmail de Mr. Robot se destacou pelo uso inovador de uma abordagem duplo-cega — nem o burocrata do Departamento de Defesa (Shea Wigham) encarregado de apurar uma queixa feita em nome de um certo Walter Cruz (Stephan James) sabia o que exatamente estava investigando, nem a personagem de Julia sabia qual mistério insistia em guardar tão zelosamente dele.
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A série continua agora a cercar esse mesmo mistério por meio de Janelle Monáe, da ótima Hong Chau — que já tinha um pequeno papel na primeira temporada — e de Chris Cooper. Acima de tudo, ela mantém o clima conspiratório e pressagioso com o qual projeta para o futuro próximo angústias do presente — a diluição da responsabilidade, a desconexão pessoal e social, a constante revisão do que seria normal e aceitável, a aplicação exponencialmente inconsequente da ciência e da tecnologia. Todas essas angústias, é verdade, já foram tratadas de alguma maneira pela inglesa Black Mirror. O que impressiona, agora, é como esse desconforto vem se disseminando, seja na perturbadora Homecoming, seja na contemplativa Tales from the Loop ou na cômica Upload, que também estrearam há pouco na Amazon.
Em Upload, criada por Greg Daniels (veja o texto na página ao lado), Nathan (Robbie Amell) é o sujeito que tem tudo na vida — é bonitão e simpático, está para lançar um app revolucionário, namora uma moça fútil mas linda —, exceto a própria vida: ao sofrer um acidente e ficar à morte, Nathan é transferido para um Além digital quase perfeitamente realista (o programa ainda tem bugs e às vezes engasga) e que será eterno enquanto dure o dinheiro para pagá-lo. Eis um sonho realizado, o de driblar a morte. Mas valerá a pena fazê-lo para comer sem engordar, escolher entre neve ou sol e passear no jardim do hotel cinco estrelas ad infinitum? A reprodução da frivolidade cotidiana nesse presente sem fim e sem propósito atormenta Nathan. Não fosse seu “anjo” — a programadora que cuida do avatar dele, interpretada pela fofésima Andy Allo —, ele preferiria dissolver-se de vez na corrente de dados. À sua maneira ligeira, Greg Daniels propõe um argumento um bocado sóbrio: o de que, em nossa obsessão por conforto, consumo e trivialidades, perdemos de vista tudo o que pode dar substância à vida. A começar, obviamente, pela morte.
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O fantasma da finitude, entretanto, está sempre presente na fascinante Tales from the Loop, passada em uma cidadezinha em cujo subterrâneo uma máquina-laboratório altera as leis que regem o universo. Com seu misto arrebatador de retrô e futurismo e sua atmosfera melancólica, Loop lança seus personagens em situações intrigantes — pausas temporais, troca de corpos, vidas paralelas — para sempre retornar ao mesmo ponto: por mais fantásticos que sejam os caminhos abertos pela ciência, o tempo inevitavelmente escapa ao nosso controle, e não há modo de vencê-lo. Exceto, talvez, aproveitando-o.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689
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