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‘Coringa’: Maestro do caos

Trágico, visceral e ancorado no desempenho extraordinário de Joaquin Phoenix, filme é como nenhum outro já produzido sobre o mundo dos super-heróis

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 out 2019, 19h37 - Publicado em 4 out 2019, 06h00

Existem gargalhadas sarcásticas, tenebrosas, maníacas — e há a risada de Joaquin Phoenix em Coringa (Joker, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país: um ricto involuntário de desespero e desatino que, quando começa, se estende pelos segundos mais longos e aflitivos que um espectador há de enfrentar em uma sala de cinema. Na primeira vez em que Arthur Fleck, o personagem de Phoenix, irrompe em risos, ele está no escritório da psicóloga encarregada de supervisioná-lo. Arthur ri, ri e ri, até saírem lágrimas dos seus olhos. A terapeuta permanece imóvel, fixa na mesma expressão cansada, à espera de que a crise se esvaia e o paciente comece seu relato. Arthur diz que está contente no emprego de palhaço (não está; o salário é miserável, os colegas se repugnam com sua esquisitice e ele apanha de estranhos na rua). Diz que a mãe está bem (não está, e nunca esteve). Fala de seus planos para se revelar como comediante; mas, quando sobe ao palco de algum dos clubes amadores de stand-up, Arthur perde o fio da meada, constrange-se ou tem um de seus acessos de riso.

Nas suas fantasias, entretanto, ele desabrocha e floresce. Cativa a plateia dos clubes e é reconhecido como um talento por seu ídolo, o apresentador de talk show Murray Franklin (Robert De Niro). Durante seus devaneios, dança com um abandono que, de novo, coloca essas cenas entre as mais estranhas e também arrebatadoras do cinema: filmes relacionados ao universo dos super-heróis há muitos, mas o Coringa do diretor Todd Phillips é único na tristeza, na loucura e na compaixão por esse homem destinado a se tornar monstruoso.

Entre os personagens de quadrinhos, o Coringa é o emblema consumado da anarquia (leia o quadro). A interpretação pioneira de Cesar Romero na série de TV dos anos 60 favorecia a bagunça e a traquinagem; a de Jack Nicholson para o Batman de 1989 o caracterizava como um agente de ruptura. Em 2007, porém, o australiano Heath Ledger virou a mesa e mudou o jogo: em Batman — O Cavaleiro das Trevas, do diretor Christopher Nolan, o Coringa de Ledger era uma criatura de decomposição, corrupção e destruição, e uma manifestação do inconsciente deixado livre e sem freio; era, enfim, uma personificação do caos, e especula-se que essa instabilidade possa ter contribuído para a morte de Ledger, meses antes de o filme estrear, aos 28 anos, de overdose acidental de medicamentos. Em mais uma associação funesta, doze pessoas foram assassinadas numa sala do Colorado por um homem vestido de Coringa, em 2012, durante uma sessão de Batman — O Cavaleiro das Trevas Ressurge — razão pela qual alguns cinemas hesitam em exibir o novo filme, e outros vêm reforçando seu esquema de segurança.

HOMENAGEM – De Niro: participação é um tributo ao trabalho com Scorsese (Niko Tavernise/Warner Bros)

Ledger ganhou um Oscar póstumo de coadjuvante pelo papel, e já é dado como certo que Joaquin Phoenix correrá na dianteira pelo Oscar de melhor ator em 2020 (também o filme, que há um mês venceu o Festival de Veneza, deve estar entre os favoritos). Comparar os dois desempenhos, porém, é perda de tempo: muito diferentes entre si, as performances de Ledger e de Phoenix se complementam e se equiparam em magnitude; são ambas antológicas e definitivas e servem, cada uma delas, à visão contundente de um cineasta sobre o momento a que seu filme pertence — um momento de poder excessivo e ilegítimo, no caso de Cavaleiro das Trevas, feito durante as intervenções no Oriente Médio, e um momento de desagregação social, no caso deste Coringa. Fã muito assumido do cinema americano dos anos 70 e início dos 80, e em particular de Martin Scorsese, o diretor Todd Phillips conjura uma Gotham suja, malcuidada e perigosa como a Nova York de Taxi Driver (1976) — onde, como o personagem de Robert De Niro naquele filme, Arthur Fleck tenta sobreviver à hostilidade da cidade e aos próprios traumas. Phillips cita muito também O Rei da Comédia (1982), em que De Niro fazia o fã obcecado por um apresentador de talk show — o papel que ele assume agora — que o rejeita e que o fã tenta então suplantar e destruir.

Não só a homenagem faz jus a Scorsese, o que é em si uma façanha, como Phillips não deixa dúvida sobre seu próprio brilho. O diretor é conhecido pelo escracho dos três Se Beber, Não Case!, mas Coringa está menos distante do seu espectro habitual do que possa parecer: é um mergulho vertical na raiva reprimida, nas frustrações masculinas e nas fantasias secretas de reparação que ele tratara até aqui como comédia. Phillips não pretende fazer uma continuação para Coringa — aliás, prefere que ninguém o faça — e encena a história de Arthur Fleck como um drama apartado do universo dos super-­heróis (embora faça um acréscimo acachapante à mitologia de Batman). Outra surpresa é o apuro estilístico e a voluptuosidade com que Phillips é capaz de filmar, e a maneira habilidosa como entretece as fantasias de Arthur com a realidade, de tal maneira que às vezes é impossível distinguir uma coisa da outra.

O crucial, porém, é que o diretor encontrou em Joaquin Phoenix um parceiro tão destemido quanto ele próprio. Phillips queria um Arthur Fleck magérrimo, para acentuar a ideia de pobreza e fragilidade, e Phoenix o atendeu com uma dieta que descreve como “obsessiva” e que o fez perder 23 quilos. Em seu 1,73 metro de altura, o efeito é devastador e, ao mesmo tempo, libertador: curvado, cavado e de aspecto doentio, Arthur tem no entanto uma elasticidade e uma fluidez de movimentos que só em um físico assim reduzido seria possível. O feito de Phoenix, porém, vai muito além da aparência. Quando Arthur afinal se cansa de ser pisoteado e revida, deflagrando uma revolta popular e instaurando a anarquia em Gotham — quando, enfim, começa a se tornar o Coringa —, ele ainda assim preserva sua vulnerabilidade tocante, aquele desejo de expe­rimentar um pouco que seja de aprovação e validação. É assustador, e de partir o coração.

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A MESMA CARTA, QUATRO NAIPES DIFERENTES

As encarnações mais marcantes do personagem


(Everett Collection/Keystone Brasil/.)

O PÂNDEGO
Cesar Romero, bailarino de talento e ator de longa carreira, fez de suas aparições um dos pontos altos da velha série Batman (1966-1968): com o rosto pintado de branco, a risada de bruxa e a interpretação afetada, criava bagunça nos episódios em que enfrentava o vingador mascarado e o menino-prodígio Robin


(./Divulgação)

O CÍNICO
Controle, ameaça e insinuação foram as marcas que Jack Nicholson imprimiu ao personagem no Batman de 1989 do diretor Tim Burton: conhecido dentro e fora da tela como uma personalidade imprevisível e um ator com dom para o desequilíbrio (imagem que O Iluminado cimentou em 1980), Nicholson levou o Coringa ao mundo adulto


(./Divulgação)

O NIILISTA
O Coringa desce sobre Gotham como um flagelo em Batman — O Cavaleiro das Trevas, de 2008: na atuação magnífica do australiano Heath Ledger (que morreu antes de o filme ser lançado, aos 28 anos, e ganhou um Oscar póstumo pelo papel), ele é uma irrupção de caos e destruição. Seus motivos podem ser intuídos — mas não compreendidos


(Niko Tavernise/Warner Bros)

O DESPREZADO
Atormentado por doenças mentais — as suas e as de sua mãe —, pobre, infeliz e tratado como lixo por conhecidos e desconhecidos, o estupendo Coringa de Joaquin Phoenix começa a emergir como o personagem clássico quando afinal desiste de buscar validação. É uma força que se constrói, pouco a pouco, sobre a fragilidade

 

Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655

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