‘A Vida Invisível’, o longa brasileiro que pode concorrer ao Oscar
Filme do diretor Karim Aïnouz é um melodrama contemporâneo — e vigoroso
Um brinco perdido, caído no chão, é tudo o que resta a Eurídice (Carol Duarte) como lembrança de sua irmã Guida (Julia Stockler), que naquela noite fugiu de casa com um marinheiro grego. Cada uma delas nunca mais deixará de usar o brinco que lhe restou: assim como as cartas que escrevem sem ter certeza de que a correspondência algum dia foi entregue, as joias de filigrana portuguesa são o emblema de duas metades que só fazem sentido quando estão juntas, e que nunca deveriam ter sido separadas. Tudo, porém, conspira para que não consigam se reunir. O marinheiro, afinal, era um mulherengo, que deixou Guida grávida; Eurídice, a filha obediente, assumiu o papel antes destinado à irmã mais velha e aceitou o casamento com Antenor (Gregório Duvivier), filho de um comerciante próspero. No Rio de Janeiro suburbano da década de 50, é o que basta para que as trajetórias de Guida e Eurídice sigam em paralelo, sem se intersectar. Embora morem na mesma cidade, elas poderiam, de fato, estar em cantos opostos da Europa, como são levadas a acreditar. É puro melodrama — mas na melhor e mais incisiva definição que o termo é capaz de alcançar no cinema, o de uma história tornada universal e atemporal pela força do sentimento. A Vida Invisível (Brasil/Alemanha, 2019), em cartaz no país, é assim a escolha certa com que o Brasil pleiteia uma vaga na disputa pelo Oscar de produção estrangeira em 2020 — tanto que já desponta entre os favoritos nas apostas de revistas especializadas como a Hollywood Reporter.
Em A Vida Invisível, o diretor Karim Aïnouz mapeia pelos anos que se seguem o percurso de cada uma das irmãs. Na verdade, um longo e tempestuoso trajeto interior, que elas percorrem sempre no mesmo lugar — Guida nos cortiços onde se refugiou ao ser expulsa pelo pai, Eurídice na casinha de classe média em que um piano é a única porta para o mundo. É doloroso e por vezes até dilacerante testemunhar a intensidade com que as irmãs anseiam uma pela outra e por tornar-se algo mais que suas definições, de mãe solteira e mulher de família. Baseando-se no romance de Martha Batalha e filmando com uma voluptuosidade que desde seu formidável Madame Satã, de 2002, não empregava, Aïnouz põe reviravolta após reviravolta no caminho das irmãs, de filhos abandonados e então recuperados a identidades trocadas. Em uma cena crucial, Guida e Eurídice passam tão perto uma da outra que poderiam se tocar — e a montagem perfeita da sequência, em que as imagens das irmãs são multiplicadas nos espelhos do ambiente, cria uma pungência que diálogo nenhum daria conta de exprimir.
No melodrama, o destino é assim – cruel. Mas o fato de a manipulação emocional fazer parte da receita não significa que ela tenha de ser um mero exercício de poder sobre o espectador. Ao contrário: Aïnouz, que no início dos anos 90 começou a carreira trabalhando com um entusiasta do gênero, o diretor americano Todd Haynes, emprega aqui as táticas do melodrama para dar corpo e sangue a conceitos como patriarcalismo e opressão feminina — que, assim, deixam de ser abstrações (ou, pior, slogans) para se tornar as armas com que pais, mães, maridos e amantes ferem as protagonistas.
Não deixa de ser curioso que o melodrama, que teve seu auge justamente nos anos 50 (período em que a maior parte do filme se passa), tenha ganhado a reputação de ser um gênero convencional: da maneira como era praticado por cineastas como Douglas Sirk, de Imitação da Vida, Sublime Obsessão e Tudo que o Céu Permite (os títulos são maravilhosamente romanescos, também), ele era já um manifesto de cumplicidade com as limitações asfixiantes da vida feminina. Em A Vida Invisível, Karim Aïnouz abre espaço para uma vividez que Douglas Sirk jamais se permitiria: suas heroínas transpiram e embriagam-se, a maquiagem delas borra e as cenas de sexo incluem uma penosa noite de núpcias. Assim, ele torna palpáveis as experiências físicas e psicológicas de Guida e de Eurídice e traduz para a sensibilidade contemporânea aquilo que o melodrama, antes, só podia sugerir. É, em uma palavra, emocionante.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662
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