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As virtudes da alienação

O blog entra em férias e se dá ao luxo de um texto antijornalístico: um convite para se afastar das notícias na companhia de Nabokov, Conrad e Kafka

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h49 - Publicado em 13 jul 2017, 21h15

Ontem tivemos uma daquelas raras notícias que nos incutem a ilusão de que as coisas melhoram, ou podem melhorar. Sim, o 12 de julho de 2017 é um dia que merece ser chamado de “auspicioso”, com todo o sabor antiquado da palavra. Mas nossa alegria vem carregada de cautelas e restrições: foi o primeiro passo, apenas, há outras instâncias a percorrer, o caminho é demorado e tedioso. E foi só um dia especial entre tantos outros nos quais o noticiário parece o mesmo do dia, da semana, do mês anterior, e o país emperra no imenso atoleiro (“Brazil´s quagmire” foi o título de uma matéria de capa da Economist, lá se vão dois anos).

Há dias, enfim, em que nos perguntamos, como o tropicalista de Alegria, Alegria: “quem lê tanta notícia?”.

Intervenção está entrando em férias. Coisa pouca, uns vinte dias. Mas, como estou com o pé na porta, me dou ao luxo de, logo antes de sair de vez, chutar o próprio balde: esta é uma coluna antijornalística. Tudo o que tenho a dizer aos leitores é que, às vezes, compensa ficar alheio à patacoada venezuelana de Narizinho e companhia na mesa do senado, ou da treta entre lombrosianos e neandertais da Nova Direita, da reunião do G20, da retomada de Mossul.
Ofereço alguns exemplos tirados de grandes monstros da literatura moderna para amparar minha apologia da alienação. Pois em meio à exigência perene de atualização, do debate surdo e burro das redes sociais, os grandes livros às vezes nos acenam com um silêncio do qual não somos dignos.
Meu ponto de partida é o volumaço de contos do Vladimir Nabokov, que tive o prazer de resenhar em VEJA quando foi lançado pela Alfaguara, em 2013.
Até a volta.

***

Vladimir Nabokov
Vladimir Nabokov (Carl Mydans/The LIFE Pictures/Yousuf Karsh/Reprodução)

John Updike, ao resenhar no New York Times, em 1995, a edição póstuma dos Contos Reunidos, de Vladimir Nabokov, dizia que Sons, de 1923, é o primeiro conto “plenamente realizado” do autor russo. Nada mal, se considerarmos que Sons é apenas o terceiro conto de um livrão organizado em ordem cronológica (e os dois primeiros contos não chegam a fazer feio). O conto trata de um caso entre o narrador e uma mulher casada na Rússia pré-revolucionária. Nas notas da edição, Dmitri, filho de Nabokov, diz que a história provavelmente evoca um caso que seu pai teve com uma prima. Pois bem: a certa altura, o narrador e a amante vão tomar chá com Pal Palych, que administra uma escola de província. E então temos esse primoroso parágrafo (“você”, neste trecho, é a amante):

“Esfregando os olhos, nosso anfitrião fez você sentar. Ao fazê-lo, derrubou da mesa um álbum com uma batida do paletó. Pegou-o de volta. Chá, iogurte e uns insípidos biscoitos apareceram. De uma gaveta, Pal Palych retirou uma lata florida de balas Landrin. Quando se curvou, uma dobra de pele arrepiada formou-se na parte de trás do colarinho. A pelugem de uma teia de aranha no peitoril da janela continha uma mamangava, morta. ‘Onde fica Sarajevo?’, você perguntou, de repente, sacudindo uma folha de jornal que pegara distraída de cima de uma cadeira. Pal Palych, ocupado a servir o chá, respondeu: ‘Na Sérvia.””

Nossa heroína entediada pega o jornal como quem pisa os astros – distraída – para em seguida expor sua trágica ignorância de geografia. E assim, pelas frestas desse idílio em paisagens campestres russas, infiltram-se os fluidos insalubres da História. Como os personagens tomam chá, cabem aqui os versos de W. H. Auden: “And the crack in the tea-cup opens / a lane to the land of the dead”. (Em tradução literal: “E a rachadura na xícara de chá abre uma estrada para a terra dos mortos”).

 

***

Imagino um comunistão da velha guarda, daqueles que não queriam saber de periferia ou cidadania: era a revolução proletária ou nada – imagino esse tipo ortodoxo lendo Sons. Suponho que ele ficaria irritado com os preciosismos do estilo burguês e decadente de Nabokov. Teria inflamado desprezo por sua representação bucólica da velha Rússia czarista. Mas daria um sorrisinho perverso, como quem antecipa um fuzilamento, ao ler o parágrafo que citei no post anterior. Eis aí a típica mulher de uma classe condenada: trai o marido (Marx e Engels já falavam dessas falhas da moral burguesa no Manifesto) e não percebe, ignorante que é dos mecanismos que fazem girar a roda dialética da história, que a Europa caminha para a guerra e a Rússia para a revolução.

A elite – ou talvez mais particularmente a mulher de elite – olimpicamente alheia aos sinais da dissolução iminente da ordem social que a sustenta já se tornou lugar comum. Maria Antonieta é a encarnação maior do clichê – pouco importa que nunca tenha dito “se não tem pão, que comam bolos”. Mas sejamos realistas: seria de se esperar que a mulher que bebe chá em Sons soubesse discernir, nas notícias sobre o arquiduque assassinado em Sarajevo, presságios da desgraça de sua classe? O próprio Nabokov, em um conto posterior, O Pináculo do Almirantado, faz pouco da pretensão de identificar no tempo presente sinais da catástrofe futura. O personagem, um escritor russo exilado (como o próprio autor), conta que certa vez, em São Petersburgo, viu um caminhão carregado de “alegres agitadores” esmagar propositalmente um gato que atravessava a rua: “Na época, isso me tocou com algum profundo sentido oculto, mas desde então tive ocasião de ver um ônibus, em uma bucólica aldeia espanhola, achatar com exatamente o mesmo método um gato exatamente semelhante, de forma que me desencantei com significados ocultos”. 

E mesmo que a personagem fosse dotada de presciência sobrenatural, mesmo que ela conseguisse discernir as nuvens vermelhas no horizonte, o que poderia, sozinha, fazer para deter a marcha da guerra e da revolução? Lembremos o poeta brasileiro, então de esquerda, que se resignava a aceitar “a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição” porque não podia, sozinho, “dinamitar a ilha de Manhattan”. A personagem de Nabokov está em posição oposta: não pode, sozinha, evitar que explodam seu continente e seu país. Só lhe resta tomar chá. Talvez em uma xícara rachada.

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Sons começa com a mulher adúltera tocando uma fuga de Bach ao piano, em um dia de chuva. Piano e chá são decerto dois perfeitos e previsíveis emblemas do descolamento aristocrático em relação à realidade. Essa personagem em particular mostra-se alheia não só às complexidades da geopolítica europeia: também falha na avaliação dos sentimentos de homens que a cercam (mais não direi, para não entregar todo o enredo do conto). No entanto há um charme irresistível na nonchalance com que ela lê as notícias de Sarajevo. E por que não dizer que há um elemento de desafio heróico – mesmo que não intencional – em tocar Bach enquanto o mundo desmorona?

Joseph Conrad (1923)
Joseph Conrad (1923) (Bettmann/CORBIS/Getty Images)

Há um exemplo mais extremo de elegância heroica em Coração das Trevas, de Joseph Conrad. No Congo (a palavra “Congo” jamais aparece no livro, mas sabemos que é, sim, o État Indépendant do imperador Leopoldo), Marlow, o protagonista, chega a uma estação a meio caminho do rio onde ele deve comandar um barco até outra estação mais distante – aquela comandada pelo ensandecido Kurtz. Descortina-se nesse passo todo o horror, o horror da exploração do trabalho escravo no Congo. Aquele era o lugar para onde carregadores nativos, exauridos pelo trabalho forçado, vinham morrer:

“Eles estavam morrendo lentamente – isso estava muito claro. Eles não eram inimigos, eles não eram criminosos, eles não eram mais qualquer coisa terrena – nada a não ser sombras negras de doença e fome, espalhadas confusamente na penumbra verdejante”. (Minha tradução improvisada perde as notas eufônicas do escritor-marinheiro: greenish gloom).

Afastando-se daquele lugar de morte em direção à estação, Marlow dá de cara com uma figura de elegância tão esdrúxula – considerados o lugar e a situação – que lhe parece uma visão. Colarinho engomado, cabelo repartido, calça branca, gravata, botas bem engraxadas: é o contador da estação, responsável por verificar os números da lucrativa extração de marfim.  Muito diferente da bela russa que não sabe onde fica Saravejo, este personagem não desconhece a realidade. É impossível que não tenha jamais visto os nativos que agonizam ao redor da estação. Sua elegância é resultado de um esforço consciente de se manter alheado ao crime cujos resultados ele contabiliza com diligência. Mas aqui vem um desses lances de ousadia e ultraje que só se encontram nos grandes escritores: Marlow declara sua admiração por essa figura incongruente. Está sendo irônico, mas só em parte. O contador, diz, tinha a aparência de um manequim de cabeleireiro. Manter-se assim naquele lugar, no entanto, exigia espinha dorsal (backbone).  E, detalhe especialmente significativo no desenvolvimento da novela, o contador é o primeiro a falar de Kurtz. “Um homem notável”, diz.

(E.D Morel, um guarda-livros que nunca pisou no Congo, foi quem deu início, na Europa, àquela que terá sido a primeira grande campanha internacional de direitos humanos, para dar fim ao regime de horror de Leopoldo no Congo. Mas esta é outra história, com outro, verdadeiro herói.)

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Mas, claro, se estamos buscando exemplos literários de alheamento heroico, não haverá como superar a famosa entrada do diário de Kafka em 2 de agosto de 1914:

“A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.”

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