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O país que pode dar certo

O Brasil vive uma ambivalência. Há um país arcaico que ainda espera tudo do Estado, e há um que se renova

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 28 ago 2021, 08h00

No Brasil acontecem coisas estranhas. O governo faz uma lista de imóveis para vender e põe lá, no meio de outros tantos prédios, o icônico Palácio Gustavo Capanema, projetado por Le Corbusier, nos anos 1930. A reação foi imediata. Em um texto no estilo heroico, li que estaria em jogo nossa “própria liberdade e independência”. Em outras manifestações, mais razoáveis, dizia-se que alguma participação do setor privado até poderia ser positiva, desde que com regras claras de preservação e acesso público.

O debate sobre a venda do edifício não dará em nada. O governo, que nada planejou, já disse que não há leilão nenhum à vista. A pergunta interessante que fica é: haveria algum problema se um edifício com aquela qualidade e simbolismo cultural fosse mesmo gerido pelo setor privado? É o que acontece, por exemplo, perto dali, com a incrível obra projetada por Santiago Calatrava, que abriga o Museu do Amanhã. Museu premiado, bem administrado, cartão-postal do Rio de Janeiro. E inteiramente gerenciado por uma organização social privada e sem fins lucrativos.

Quando penso nessas coisas me vem à mente um exemplo oposto. O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Casa da família real brasileira durante todo o período imperial. Administrado como repartição estatal vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Queimou quase todo em uma noite triste de domingo, três anos atrás. Ainda lembro de minhas visitas ao museu, à época em que morei no Rio. O brasão imperial encostado numa parede, os aposentos do imperador ocupados por mesas de trabalho burocrático. Plano de investimentos pífio, idem para a captação privada de recursos. No fim de tudo, alguém ao menos foi responsabilizado? Por óbvio que não. Apenas esquecemos do assunto e seguimos em frente.

O Brasil vive uma ambivalência. Há um país arcaico que ainda espera tudo do Estado, e há um país que se renova. Agora mesmo tivemos sinais disso, quando se anuncia a renovação completa do espaço do Masp, projetado por Lina Bo Bardi, também uma joia da arquitetura brasileira. A obra inclui a integração do edifício anexo com um túnel subterrâneo, em plena Avenida Paulista, e um ganho de 66% na área de exposições do museu. O financiamento? É de 180 milhões de reais, captados no setor privado, sem incentivos, de famílias que terão seus nomes gravados em uma placa quando a obra for inaugurada.

Alguém poderia dizer que é um caso isolado, mas a verdade é que não é. O mesmo valor está sendo doado para a construção da nova fábrica de vacinas, do Instituto Butantan. Algum milagre? Nada disso. Apenas o que deve ser feito, alguma sabedoria para inovar e buscar um caminho que há muito é conhecido, internacionalmente, na gestão de patrimônio histórico, museus, universidades, orquestras, centros de pesquisa e outros bens de interesse público mundo afora.

O conservadorismo que ainda temos nesse terreno por vezes é engraçado. Lembro de um casal amigo que um dia resolveu fazer seu casório no Central Park. A pequena celebração foi num daqueles gramados com a silhueta da Big Apple, ao fundo. Aqui no Brasil, eles eram vanguarda nas “lutas contra a privatização” de bens culturais. Mal sabiam que o parque é gerido pela Central Park Conservancy, 100% privada. Vale o mesmo se meus amigos dessem um pulo no Metropolitan Museum ou andassem pelo High Line. Devem ter ido, imagino, mas não sei se eles se deram conta. Somos um pouco assim. Gostamos que as coisas funcionem, mas nem sempre estamos dispostos a pagar o preço. Nesse caso, quase nenhum. Basta repaginar um pouco as ideias e pôr de lado velhos preconceitos.

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“Basta repaginar as ideias e pôr de lado velhos preconceitos”

Somos um país marcado pelo paternalismo estatal, mas estamos mudando. Nossa história se fez pela anterioridade do Estado em relação à sociedade. Em certo sentido o avesso da tradição americana. Quando Alexis de Tocqueville visitou os Estados Unidos, nos anos de 1830, ficou espantando com o associativismo daquela sociedade. Os americanos “associam-se para a segurança, o comércio, a indústria, o prazer, a moralidade e a religião”. Isso sempre se aplicou às universidades e aos museus. Harvard e Stanford surgiram assim, é exatamente disso que se trata quando li, por esses dias, que Jeff Bezos doou 200 milhões de dólares para a Smithsonian Institution, em Washington, para criar o Bezos Learning Center, na instituição. Alguns dirão que se trata de uma atitude egoísta de alguém que só quer preservar o nome na história. Outros dirão que é um gesto altruísta, e é provável que ambos tenham razão.

No Brasil temos o mesmíssimo potencial. Não temos como reescrever nossa história, mas há uma variável sobre a qual temos controle: nossas instituições. De que maneira teremos milhares de doadores e voluntários para trabalhar em um museu ou um parque público se não há organizações civis no comando, engajadas em buscar apoios, sem a burocracia do governo emperrando tudo?

Um exemplo: não há grande universidade ou museu americano que não tenha seu fundo de endowment. É basicamente uma poupança de caráter permanente, criada via doações e múltiplas fontes de recursos, que a instituição vai formando ao longo do tempo. E com isso vai se tornando menos vulnerável ante os governos e variações de mercado. No Brasil já temos poucos exemplos nessa direção. Se alguém quiser doar seu patrimônio para financiar pesquisas ou a música de qualidade, como fez Andrew Carnegie, o herói da filantropia americana, que opções tem? Se quiser ajudar uma universidade ou museu estatal, diremos que deposite seu dinheiro na conta do governo? Do que mesmo estamos reclamando quando as pessoas doam muito pouco e observamos aquela imensa fogueira que tomou conta do Museu Nacional?

Apesar de tudo, há sinais de mudança. A Radar PPP identificou 284 projetos de PPPs nos setores de cultura e turismo país afora. Isso inclui desde centros de eventos, passando por projetos como o Complexo do Pacaembu, em São Paulo, até espaços históricos como o Forte Nossa Senhora dos Remédios, em Fernando de Noronha. Essas coisas eram muito pouco prováveis no Brasil de vinte anos atrás, mas hoje são pura realidade.

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Quando vou a um concerto da Osesp, na Sala São Paulo, ou observo os avanços de uma jovem instituição como o Fundo Centenário, criado por ex-alunos de engenharia da UFRGS, na minha Porto Alegre, vejo sinais de um país que pode dar certo. Que na verdade já vem dando certo, longe do bate-boca dos políticos, em Brasília, longe das ilusões do velho paternalismo estatal, que herdamos de nossa tradição, mas ao qual de jeito nenhum estamos condenados.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753

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