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Fernando Schüler

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O país da vergonha

O fim da miséria é nossa fronteira civilizatória, no século XXI, tanto quanto o foi, no século XIX, o fim da escravidão

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h35 - Publicado em 9 out 2021, 08h00

A imagem causou algum impacto. Um homem ainda jovem, Luis Vander, agachado, catando um resto de carne, no caminhão. “Vai aí e pega uma pelanquinha”, diz ele, “salga e manda pra casa.” Luis é morador de rua na Glória, pedaço do Rio que cansei de cruzar quando trabalhava ali perto, na Cinelândia. Vez por outra encontrava pessoas morando na rua, como quase todo mundo encontra nas grandes cidades brasileiras. É o país da vergonha, com o qual já nos acostumamos. Marcelo Neri, da FGV, contabiliza 13% da população vivendo abaixo da linha de miséria. Para quem alimentou a expectativa, uma ou duas décadas atrás, de que eliminaríamos a miséria e daríamos um “salto civilizatório”, não deixa de ser um soco na cara.

A pobreza é um tema que muita gente evita, me disse um colega, porque acentua uma sensação de impotência sobre o país. A miséria caiu de 20%, no início dos anos 1990, para algo próximo a 6%, em 2014, e muita gente acreditou que as políticas sociais eram a chave desse processo. Quando da crise de 2014/2016, em apenas um ano perto de 2 milhões de brasileiros cruzaram, para trás, a linha da miséria. Descobrimos que a chave era o crescimento econômico. A transferência de renda importa, mas não decide o jogo. Ela reduz o que Sendhil Mullainathan chama de “armadilha da escassez”, o círculo vicioso que inibe os muito pobres a dar os passos difíceis (buscar um emprego, estudar) para superar a própria miséria.

O tema é incômodo, mas necessário. O fim da miséria é nossa fronteira civilizatória, no século XXI, tanto quanto o foi, no século XIX, o fim da escravidão. Essa intuição estava já contida na social-democracia e na tradição liberal. Pensadores liberais como Milton Friedman se bateram pela ideia de um imposto de renda negativo, e Hayek deixou claro que sua “ordem espontânea” deveria assegurar uma renda mínima, que ele definiu com “um piso abaixo do qual ninguém deveria cair”.

Martin Luther King produziu uma boa síntese dessas tradições. Depois dos direitos civis, ele dedicou seus últimos anos ao combate à pobreza, que via como o próximo desafio a ser enfrentado pela América. Lançou a “Poor people’s campaign”, percorreu o país fazendo sermões e planejava uma gigantesca marcha sobre Washington para aprovar uma espécie de lei dos direitos civis contra a pobreza. Acreditava que a lei e o direito tinham um papel a cumprir aí, se a América quisesse assegurar a cada um a “vida, a liberdade e a busca da felicidade”, como estava escrito na Constituição.

Em 1967, King discursou em Stanford dizendo que o desafio da pobreza era muito mais difícil do que o dos direitos civis, que diziam respeito à igualdade formal e a uma questão de “decência”. Do direito de um negro “pedir um hambúrguer e um café” em uma lanchonete como qualquer cidadão. O desafio agora era alcançar uma “igualdade genuína”, que nada tinha a ver com a quimera da “igualdade de renda”. Dizia respeito ao que é essencial à vida. Em primeiro lugar, um país não segregado. Assustava-lhe o espectro de uma América feita de bairros negros cercados de subúrbios brancos. Em segundo, o acesso de todos a “um salário decente” e uma “renda mínima garantida”. Andava irritado com o enorme gasto do governo com uma guerra estúpida, no Vietnã, e para levar o homem à Lua em vez de aplicar o dinheiro “com os dois pés no chão, aqui na terra”. E desconfiava que muita gente graúda que havia apoiado os direitos civis tiraria o time de campo diante dessa nova agenda. Foi com essa angústia que ele se foi, naquele dia triste de abril, em Memphis.

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“Não seremos uma grande civilização sem vencer a miséria”

De certo modo, andamos na mesma batida no Brasil. Temos direitos elegantes inscritos na Constituição que mal se realizam na vida real. Nosso mundo político, lá no fundo, dá muito pouca bola ao tema da pobreza. Basta observar como encaramos a provisão de serviços pelo governo. Virou lugar-comum dizer que aeroportos e as áreas de infraestrutura são muito importantes e por isso não podem ficar nas mãos da burocracia pública. Nas mãos da burocracia pública só devem ficar as escolas, os postos de saúde e as creches públicas. Casualmente tudo que nossa elite, e virtualmente todos que tomam decisões, na política, há muito se habituaram a comprar no setor privado.

O ponto é que os mais pobres não formam um grupo de pressão no mercado político. Você vai a Brasília e observa o lobby dos bancos, dos juízes, policiais e guardas municipais. Vê o lobby dos professores públicos, igrejas evangélicas e da Zona Franca de Manaus. Vê inclusive o auto-lobby dos políticos, emplacando o fundão eleitoral. Só não encontra o lobby dos mais pobres, dos pais de filhos em escolas públicas, e muito menos o dos brasileiros como o Luis Vander, que vagueiam à noite pelas ruas da Glória, no Rio, em busca de uma pelanca ou algo melhor para saciar a fome. Costumamos disfarçar o tema da pobreza sob a ideia da “desigualdade”. É como se o importante fosse a distância entre os recursos das pessoas, e não se essas mesmas pessoas têm o suficiente para viver. Se você nascer no Maranhão terá perto de 20% de chance de crescer em uma casa com serviço de esgoto sanitário; nascendo em São Paulo, as chances irão a 90%. O importante é a diferença de 20% para 90% ou o fato de que 80% das pessoas, no Maranhão, ainda não têm o acesso?

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O tema da desigualdade é sexy na arena política. Ele se presta a uma retórica de combate. O tema da pobreza não. Ele está apenas distante do universo de prioridades de quem decide, seja no governo, seja no mundo da opinião política. É muito mais fácil obter audiência falando em “taxar os mais ricos” ou amaldiçoando a fortuna do Jeff Bezos do que com um debate sem graça sobre a multidimensionalidade da pobreza, indicadores sociais e legislações inteligentes, como o recente marco do saneamento básico, facilitando investimentos e já sinalizando resultados reais para os mais pobres.

O foco de qualquer política social deve ser ajudar as pessoas a andar com as próprias pernas. Não seremos uma grande civilização sem vencer a miséria, mas também não o seremos mantendo as pessoas presas ao Estado. Por isso a atualidade da agenda de Martin Luther King. Direitos iguais e acesso universal a recursos muito básicos, que no fundo sabemos quais são.

E a utopia de um governo que gaste “com os dois pés no chão”, deixando o caminho mais livre possível para que cada um, a partir das próprias escolhas, conduza sua jornada em “busca da felicidade”.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759

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