O declínio da tolerância
Uma República não se faz com um órgão de Estado fazendo a “curadoria” da sociedade, signifique isso o que significar
Nunca tinha ouvido falar da Bárbara. Sou meio alienado dessas coisas e há muito ando cansado do bate-boca político. Fui pesquisar. Bárbara era uma dona de casa que se tornou youtuber. Lançou o canal Te Atualizei e virou sucesso. Mistura bom humor e crítica política, apoia Bolsonaro, difunde as teses tradicionais da “nova direita”, bastante conhecidas aqui pelos trópicos nos últimos anos.
Agora seu canal foi “desmonetizado”, por uma decisão do ministro Luis Felipe Salomão, do TSE. Junto com ela, um amplo conjunto de canais digitais com perfil semelhante que basicamente se dedicaram, nos últimos tempos, a fazer campanha pelo voto impresso e criticar a urna eletrônica. De minha parte, nunca vi evidência de que nosso sistema de voto digital tivesse algum problema e penso que o país deveria andar para a frente, discutindo como melhorar o sistema, na linha do que vem fazendo o TSE, e não voltar no tempo.
Mas o ponto não é esse. Uma República não se faz a partir da definição, pelo Estado, do que pode ou não pode ser dito. Não se faz pela “tutela jurídica da opinião”, na boa definição que li dias atrás. Uma República não se faz com um órgão de Estado fazendo a “curadoria” da sociedade, signifique isso o que significar.
A decisão do TSE resolveu punir os sites dizendo que eles não fazem “críticas legítimas” nem “propõem soluções para aperfeiçoar o sistema”. Diz que os ataques são “infundados”, sem “provas concretas” nem “argumentos factíveis”, como seria “próprio da democracia e da liberdade de opinião”. E que tudo já foi “exaustivamente refutado”, pelo TSE e pela Polícia Federal. Por fim, diz que essas pessoas estão ganhando dinheiro com tudo isso, com a agravante de estarem agindo em conjunto, visto que “não apenas se conhecem, como também se apoiam mutuamente, pois não raras vezes mencionam-se ou replicam conteúdos”.
Confesso que quando li essas coisas me deu um certo cansaço. O ministro tem razão em dizer que boa parte daquelas críticas não tem pé nem cabeça, mas essa está longe de ser a questão relevante aqui. Não cabe à Justiça Eleitoral ou qualquer autoridade dizer que tipo de crítica tem ou não “legitimidade”. Cidadãos têm legitimidade para criticar, em uma democracia, independentemente da opinião dessa ou daquela autoridade. Igualmente não está escrito na Constituição que uma crítica deva vir seguida de “soluções” para esse ou aquele problema. Neste caso havia uma PEC em análise no Congresso, e era a seu favor que os tais sites faziam seu proselitismo. Por fim, não consta que exista em qualquer democracia algo como crime de “apoio recíproco e replicação de conteúdo”.
A liberdade de expressão está minguando, no Brasil, há algum tempo. Minguando porque não temos consenso sobre esse tema e porque nos falta uma tradição robusta de direitos civis. No inquérito das fake news, tivemos a volta da censura prévia. O próprio Congresso criou um novo tipo de crime, a “comunicação enganosa em massa”, para quem disseminar “fatos que sabe inverídicos”. Tudo isso vem acontecendo, mas nada se compara a essa recente decisão do TSE. Talvez seja a hora de parar e pensar um pouco a respeito.
Algumas lições vêm da história. Quando John Milton foi ao Parlamento inglês, no século XVII, pedir liberdade para a edição de livros, as razões da censura eram constrangedoramente parecidas. Como era possível editar livros com ideias falsas, desestabilizadoras, ofensivas a tudo o que há de sagrado, e ainda ganhar dinheiro com isso? Pacientemente, Milton explicou que não cabia ao reino a definição do que era verdade, que ninguém era infalível. E que as pessoas deveriam fazer esse julgamento, e não o poder. Com isso lançou as sementes que fizeram germinar o moderno direito à expressão.
A história brasileira também ensina. Quando observo o ministro Fachin dizendo, em uma sessão da Corte, ser “inadmissível a defesa da ditadura”, me lembro que esse mesmo argumento foi usado, 74 anos atrás, para pôr o PCB na ilegalidade. Estava tudo lá. Dizia-se que eram inadmissíveis manifestações “colidentes com os princípios democráticos”, que era um erro permitir que ideias autoritárias se alastrassem e que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Hoje os sinais andam trocados, mas na forma tudo me lembra a ironia de Talleyrand: nada esquecemos, nada aprendemos.
“Em sociedades plurais, o direito à expressão é condição do pacto político”
O ingresso da política na lógica da guerra cultural vem gradativamente tornando a liberdade de expressão um tema incômodo. De um lado, cresceram as pautas identitárias e sua “reivindicação do absoluto”, como li dias atrás. Os ofendidos não admitem controvérsia. De outro, a reação conservadora e sua carga de ressentimento. Sua entrada em cena foi tomada largamente como ilegítima pelos centros hegemônicos de opinião. Se não há legitimidade do outro lado, por que o direito à palavra? Se já sabemos o que tem e o que não tem “fundamento”, por que perder tempo com o que essa gente tem a dizer? Como vaticinou David Goldberger, o advogado ícone da defesa das liberdades civis, “os progressistas estão deixando a Primeira Emenda para trás”.
Há um risco institucional nisso tudo. Em sociedades plurais, o direito à expressão é condição para a legitimidade do pacto político. Isso é há muito sabido. Em sua Carta sobre a Tolerância, Locke observava que não era a “diversidade de opiniões (que não pode ser evitada), mas a recusa da tolerância para com os divergentes que tem gerado toda a tensão e guerra em torno da religião”. Locke se referia à religião, que era a grande fonte de discórdia no século XVII. Essa mesma fonte, em nosso tempo, é a política. Não brigamos mais para saber se Deus é uno ou trino, se é a fé ou a igreja que nos livrará do inferno. Brigamos sobre o voto impresso, sobre Lula e Bolsonaro, sobre a Lava-Jato e até mesmo sobre os vídeos da Bárbara, no YouTube.
Tolerância e a liberdade de expressão nasceram, no mundo moderno, do reconhecimento de que a verdade explodiu. Que as pessoas passaram a cultivar ideias, deuses e valores diferentes, usando palavras distintas e um jeito de falar muitas vezes insuportável para os outros. Este mundo confuso requer igualdade na regra, e a ninguém é dado reivindicar autoridade sobre a verdade. Nem mesmo uma decisão de nossos mais altos tribunais. É essa a condição para que o pacto político seja inclusivo e as pessoas se sintam representadas pelas instituições.
Ajudar a resgatar esse sentimento talvez fosse, no longo prazo, a melhor contribuição civilizatória que nossa Suprema Corte, mas não só ela, poderia dar ao Brasil.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752