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Fernando Schüler

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A república dos compadres

Cada vez que a máquina extrativista dos interesses especiais entra em jogo no mercado político, a corda arrebenta do lado dos sem lobby

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h27 - Publicado em 30 out 2021, 08h00

“A cachorra anda sempre comigo”, diz Everaldo. “Ela me esquenta nas noites frias.” O nome, conta, o pai botou por causa do lateral da seleção, em 70. Everaldo anda na rua há coisa de um ano. Fez de tudo. Serviço de limpeza, pintura, ambulante. Era “microempresário”, como gosta de dizer. Nunca roubou, garante. “Só quero uma oportunidade”, diz, enquanto pega um cobertor no abrigo da prefeitura, e toca pra rua de novo. “Ali não fico, é muita gente, a rua é muito melhor.”

Nos últimos dias li muita coisa sobre os novos moradores de rua. Há dois anos eles eram 24 000, mas hoje passam de 60 000, segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo. Há disputas por espaços embaixo dos viadutos. “São mais seguros”, segundo uma reportagem. Leio sobre dois irmãos que perderam o emprego na pandemia e foram morar com a mãe, dona Maria Helena, 78 anos, no Viaduto Antônio de Paiva Monteiro, Zona Leste de São Paulo. É meio sem sentido a pergunta, mas o que fazem dois brasileiros com saúde para trabalhar e uma senhora de 78 anos, há muito com direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), de um salário mínimo, embaixo de um viaduto? Se John Rawls tem razão ao dizer que as sociedades são “empreendimentos cooperativos para benefício recíproco”, o fato é que andamos falhando miseravelmente como sociedade.

Leio sobre essas coisas enquanto assisto à discussão infinita sobre como vai se pagar o novo Auxílio Brasil, que o governo decidiu criar, para os muito pobres. O limite do teto de gastos, para 2022, vai a 1,6 trilhão de reais, mas não teve de onde tirar os 30 bilhões de reais necessários para o novo programa. Foi aí que o teto de gastos dançou. Na verdade, dançamos todos. Marcos Mendes, um dos arquitetos do teto, foi direto: “O saldo vai ser mais volatilidade, menos geração de empregos e mais inflação”.

Como é que é essa história de um país com a maior carga tributária da América Latina, fora Cuba, que tira muito do bolso do contribuinte, mas não tem “espaço fiscal” para um programa destinado aos muito pobres? Estou longe de achar que transferência de renda é solução para nosso problema civilizatório. Mas a proteção da dignidade das pessoas é uma das funções elementares do Estado, e sobre isso há poucas dúvidas, à esquerda ou à direita. Minha tese é de que há muito dispomos do diagnóstico sobre o que está mal no Estado brasileiro. Apenas não fazemos o que deve ser feito. Tempos atrás o Banco Mundial fez um relatório, “Um Ajuste Justo”, dizendo basicamente que “o Brasil gasta mais do que pode e gasta mal”. A lógica é simples: o teto de gastos foi uma boa medida. Espécie de operação bariátrica em um obeso crônico. Mas não é sustentável sem uma sequência de reformas na máquina do Estado. “Sua implementação”, diz o estudo, exigiria “a redução dos gastos em cerca de 0,6% do PIB ao ano, na próxima década”. O documento detalha “potenciais ganhos fiscais” em pelo menos 7% do PIB, ou catorze vezes o que gastamos hoje com o Bolsa Família, até 2026, se tivermos coragem de encarar algumas reformas.

Quando observo a série de reformas recomendadas pelo estudo, na educação, na revisão dos incentivos fiscais, na burocracia pública, me vem à mente o argumento de um dos grandes economistas do século XX, Mancur Olson. Ele mostrou como a ação predadora dos grupos de lobby e interesses especiais pode levar à degradação econômica e social. Grupos bem organizados, com interesses concentrados, tendem a dar de lavada nas maiorias desorganizadas. Isso vale para a indústria calçadista, sugerindo “manter a desoneração da folha para gerar empregos”, ou nossa corporação jurídica, com seu auxílio-moradia de 4 300 reais por mês, “porque está previsto em lei, não é mesmo?”.

Somos o “país da meia-entrada”, na imagem criada por Marcos Lisboa. No fundo é isso que nos ensina o drama do novo programa social que não cabe no Orçamento. O teto de gastos foi feito para deixar claro que o cobertor do dinheiro público é curto e que é preciso fazer escolhas. Para que os muito pobres entrem no jogo, gente importante teria de abrir mão de ao menos um pedaço de sua meia-entrada.

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“Algo não vai bem, e não é de hoje, no pacto social brasileiro”

O primeiro desafio é reconhecer que não há bala de prata para fazer o ajuste estrutural. Ele exige um sem-­número de escolhas sobre cortar privilégios, extinguir órgãos sem sentido, revisar gastos e programas. Cada escolha tem um custo político alto e é incapaz, isoladamente, de resolver o problema. “Não vale o desgaste”, como nos acostumamos a escutar em Brasília. Exemplos? Aprovamos o fundão eleitoral de 2 bilhões ou 5 bilhões de reais para pagar santinhos, jingles e marqueteiros na campanha. Qual é o problema? Alguém acha mesmo que 2 bilhões de reais pesam no Orçamento? Por vezes são coisas triviais. Nossos ex-presidentes têm direito pelo resto da vida a uma equipe de oito pessoas, passagens, diárias, dois veículos, motoristas etc. Custam só 4 milhões de reais todos os anos. Somos um país gentil. Alguém acha que uma mixaria dessas faria alguma diferença nos cofres públicos?

Nossos juízes receberam 2,4 bilhões de reais, nos últimos quatro anos, em indenizações pela venda de suas férias de sessenta dias. Por que férias de sessenta dias? Resposta fácil: porque está na lei. Pergunta difícil: mas por que está na lei? Porque a reforma administrativa enrola o assunto há dois anos; porque o Executivo diz que não pode fazer nada; o Congresso não se mexe, pois tem “outras prioridades”, e o Judiciário diz que está apenas “cumprindo a lei”. Mas o.k., é só um detalhe. Alguém acha mesmo que 2,4 bilhões de reais pesam alguma coisa nos cofres da União?

Trata-se de um caso típico de “tirania das pequenas decisões”. O contexto em que uma série de decisões isoladas e feitas por “boas razões” gera um efeito cumulativo ruim para todos, ou quase todos. Sem bala de prata, o que precisamos é de critérios, de uma visão de país e uma boa dose de disciplina. Em resumo: valores. Olson, em seu último grande livro, disse que o caminho para a prosperidade, nas sociedades abertas, passava pelo respeito aos direitos individuais, à liberdade, à propriedade, à expressão, e pela capacidade de protegermos o bem público da ação predadora dos interesses especiais. Pela recusa do “capitalismo de compadrio”, primo-irmão de nossa velha tradição patrimonialista.

O sentido dos valores fica mais claro quando lidamos com a vida das pessoas. Leio que, nas noites quentes de João Pessoa, um grupo de voluntários, liderado pela Neide e pelo Ronald, distribui quentinhas para os moradores de rua. Começou pequeno, mas eles hoje atenuam a fome de perto de 1 000 pessoas. Uma indenização de férias, um naco do auxílio-moradia ou do fundão eleitoral poderiam ter bancado centenas ou milhares de noites sem fome para aqueles brasileiros.

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É só um toque. Nem de longe a ação do Estado deve substituir o protagonismo das pessoas que agem voluntariamente, com empatia, pois é disso que é feita uma grande sociedade. Mas tem alguma coisa muita errada aí. Cada vez que a máquina extrativista dos interesses especiais entra em jogo, no mercado político, a corda arrebenta do lado dos sem lobby. Dos “invisíveis” que andam por aí, assombrando nosso dia a dia, como a nos dizer que algo não vai bem, e não é de hoje, no pacto social brasileiro.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762

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