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A ilha do absurdo

Em Cuba não há estado de direito. O que fascina nos protestos são as histórias de coragem pessoal

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 jul 2021, 06h00

A cor da resistência e do ritmo da liberdade, em Cuba, é negra. Afrika Reina, Denis Solís, El Funky, Luis Manuel Otero. Sua música é o rap e suas histórias, quase inacreditáveis, para quem ainda vive no mundo imaginário dos heróis barbudos. O rapper Maykel Osorbo, no ano passado, costurou a própria boca quando intimado pela segurança do Estado. É ele que surge com o punho cerrado, acorrentado em um só braço, diante da multidão, na imagem que correu mundo. Durante anos foi assim com as Damas de Blanco, com Berta Soler, com as greves de fome de Guillermo Fariñas, Daniel Ferrer e tantos outros, com o assassinato de Oswaldo Payá. A verdade é que nunca demos bola. Cuba se tornou aquele assunto do qual todos se cansaram, a mentira que resolvemos engolir.

Por estes dias as coisas explodiram. Patria y Vida foi o rap que embalou os protestos de domingo. “Seu tempo acabou / o silêncio foi quebrado”, diz a letra. “O riso acabou / o choro está correndo. Acabou / e não temos medo.” A música explodiu e virou um tipo de manifesto. “Anunciam o paraíso em Varadero, enquanto as mães choram pelos filhos que partiram.” A autoria é do rapper Yotuel Romero e um grupo de artistas de San Isidro. O presidente-ditador Díaz-Canel foi às redes sociais pedir aos cidadãos que cantassem o hino nacional no lugar do rap de Yotuel e exibiu a velha imagem de Fidel pregando “Pátria o muerte!”. Algum dia, no futuro, isso será folclore.

O que fascina, nos protestos, são as histórias de coragem pessoal. Em Cuba não há estado de direito. O governo pode decidir, a qualquer hora, invadir uma casa ou levar alguém preso, e as pessoas simplesmente não têm a quem recorrer. Díaz-Canel foi à televisão convocar partidários do regime a ir às ruas e confrontar os manifestantes. “É um chamado à guerra civil e precisa ter consequências”, escreveu Yoani Sánchez. “Espero que a Corte Internacional de Justiça tome nota disso.” Não tomará. O silêncio de Michelle Bachelet, alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, nos dias que se seguiram aos protestos, é sintomático. O regime cubano tem respaldo internacional. É a ditadura consentida, e isso vem de longe.

Há muitas razões para a explosão popular cubana. A já combalida economia da Ilha encolheu 11% em 2020. A paralisação do turismo é o fator principal. A partir daí, o sistema tende ao colapso. O Estado emprega cerca de 70% da mão de obra e o regime da libreta assegura uma ração básica às famílias. Quando estive na Ilha, um simpático cubano me definiu o modelo: a cota de alimentos do governo cobre mal e mal 50% do que a família precisa. Para a outra metade, “hay que luchar”, o que significa basicamente arrumar qualquer maneira de ganhar dinheiro no mercado informal. Fazer careta para fotografias, alugar quartos, transporte de todos os tipos, mercado clandestino de charutos (falsificados ou não), ambulantes, pedintes e “propinas” por onde se passa.

A crise fez o governo endurecer o racionamento e levou o já precário sistema de saúde ao colapso. “As pessoas estão morrendo”, diz o funcionário de um hospital, “por negligência, infecções hospitalares, falta de respiradores, medicamentos para o câncer, antibióticos. E porque os médicos mandam as pessoas para casa para morrer, porque não têm o que fazer.” A verdade é que nenhuma explicação para a explosão cubana é suficiente. Questionado por que o movimento havia começado em San Antonio de los Baños, o jornalista Reinaldo Escobar disse: “Por razão nenhuma”. As pessoas simplesmente cansaram, e por um momento esqueceram o medo. A partir daí, a internet produziu uma conexão do tipo a que assistimos, mundo afora, nos últimos anos. Na Primavera Árabe, no Brasil de 2013 e recentemente no Chile. Por razões muito diferentes.

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“Cuba se tornou aquela mentira que resolvemos engolir”

Em Cuba, não consigo deixar de conectar tudo isso à sensação de absurdo com que saí de lá, anos atrás. As histórias dos balseros (foram mais de 500, apenas neste ano); o restaurante de luxo, no centro de Havana, cercado por uma cidade em escombros; os lugares reservados a turistas ricos, em regra brancos, logo ao lado das tiendas para cubanos, sem quase nada; o motorista do velho Buick americano, dos anos 50, que empurrei várias vezes, me explicando seus planos mirabolantes de fuga para o México; a escola forrada de imagens do Che e de Fidel, caindo aos pedaços; a retórica oficialista e a imensa favela cercando tudo.

Se o movimento popular levará ao fim do regime castrista? Não creio. O Estado cubano é uma máquina repressora altamente eficiente. A seguridad del Estado está em toda parte, os grupos de contramanifestantes e as brigadas de reposta rápida são facilmente mobilizáveis, como se viu naquele domingo. Mas o que mais pesa são a dependência econômica e a ausência de uma oposição organizada. Ativistas de oposição não conseguirão emprego, poderão ser presos (observem, na internet, a prisão ao vivo da youtuber Dina Stars), perdem suas casas (vejam o desabafo de Afrika Reina, após o segundo despejo em poucos dias) e levam uma vida infernal. No mais, a oposição é clandestina. O ponto mais próximo que Cuba chegou de uma abertura foi quando Oswaldo Payá liderou o projeto Varela. Payá era uma liderança social reconhecida, vencedor do Prêmio Sakharov, do Parlamento Europeu. Foi morto em uma emboscada em 2012. Yoani Sanchez, à época, vaticinou: “A morte de Payá faz Cuba perder muito de seu futuro”.

Deveria surpreender o apoio que uma ditadura absurda, responsável por 7 776 mortos e desaparecidos até hoje documentados (Archivo Cuba), fora milhares de presos, exilados e balseros mortos, tem por parte de líderes políticos importantes no Brasil? Lula é apenas o caso mais emblemático. A mim não surpreende. Essas pessoas dependem do voto popular, e se elas apoiam abertamente uma ditadura é porque intuem que a maior parte dos eleitores não dá a menor importância a isso. Do lado oposto do espectro político não é diferente. Bolsonaro não elogiou a vida inteira o regime militar? Alguém dirá que é diferente. De fato. Ditaduras são sempre diferentes, à exceção de um detalhe: prosseguem sendo ditaduras.

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De toda maneira o tempo parece correr à frente. Vargas Llosa um dia disse, falando sobre Fidel, que “a história não o absolverá”. Desconfio que ela não será generosa, da mesma forma, com aqueles que durante décadas bajularam o arbítrio. E que logo mais, quando o dia clarear, quem será lembrado com respeito são estes que hoje pedem passagem, que dizem não, que andam, no fio da navalha, pelas ruas de Havana.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747

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