Os fatos v. ‘American Crime Story’
A série 'O Povo Contra O.J. Simpson' não precisaria de elementos de ficção para conseguir dramaticidade, mas os 10 episódios não são um documentário
Se uma novela colocasse num mesmo enredo uma celebridade negra acusada de assassinar a mãe de seus filhos com requintes de crueldade, um cachorro insistente que leva pessoas até a cena do crime, um investigador racista e uma perseguição policial assistida por 95 milhões de pessoas, ela poderia ser chamada de dramalhão. Mas esses fatos fazem parte da história real do astro de futebol americano Orenthal James Simpson, acusado de esfaquear até a morte a ex-mulher Nicole Brown Simpson e o garçom Ronald Goldman, seu amante, em 12 de junho de 1994.
Considerado “o julgamento do século”, o caso de duplo homicídio que se transformou em debate racial foi coberto de maneira intensa pela imprensa americana até o seu desfecho, em 3 de outubro de 1995. “O país inteiro assistiu ao anúncio do veredicto de Simpson pela televisão – uma comoção comparável àquela gerada, por incrível que pareça, pelo assassinato de John F. Kennedy”, conta o jornalista Jeffrey Toobin no livro American Crime Story – O Povo contra O.J. Simpson.
Baseada na obra, a série homônima disponível no catálogo da Netflix não precisaria de elementos de ficção para conseguir dramaticidade, mas os dez episódios não são documentários. Por vezes, os roteiristas carregam nas tintas para enfatizar romances, criar vilões e até cenas de humor. Mas sem exagero. “Os fatos reais já são surreais”, diz a historiadora Suzane Jardim, que estuda a estereotipação e a representação do negro na mídia no Brasil e nos EUA. “A série é bastante convincente. Há liberdade artística, mas com base em dados reais.”
Akita denuncia o crime
Trata-se de um caso em que é mais difícil acreditar na realidade do que na ficção. Os corpos de Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman foram realmente descobertos por causa de um cachorro, mas a série edita a história e o número de personagens. Em uma das primeiras cenas, que dura poucos segundos, um homem encontra um cachorro latindo. O animal sai em disparada, e ele o segue até descobrir a cena do crime.
Na verdade, na noite do 12 de junho de 1994, Steven Schwab cruzou com um akita enquanto passeava com a sua cachorra. Apesar de ter percebido que as patas estavam ensanguentadas, Schwab não identificou o dono do animal e seguiu seu caminho. Para a sua surpresa, o cão o seguiu. Ao chegar em casa, encontrou com os vizinhos Sukru Boztepe e Bettina Rasmussen, que concordaram em ficar com o akita aquela noite. Como o animal estava agitado, arranhando a porta, decidiram passear com ele. Só então o cão arrastou os dois até o local dos assassinatos.
A perseguição policial
No dia 17 de junho de 1994, os EUA pararam para assistir à perseguição da ao carro de O.J. Simpson, considerado um fugitivo. As cenas foram transmitidas ao vivo pelos helicópteros das emissoras de TV, que interromperam a programação normal. “Cerca de 95 milhões de americanos assistiram a alguma parte da perseguição pela TV – quase 5 milhões a mais que a audiência do Super Bowl naquele ano”, conta Toobin em seu livro. Atraídos pelo frenesi, simpatizantes cercaram a pista ao longo do trajeto com cartazes de apoio ao ídolo. Mais tarde, depois de ser preso, O.J. relatou que não tinha a intenção de fugir. Ele queria visitar o túmulo de Nicole, mas mudou de ideia ao perceber que o cemitério estava cercado por policiais.
Sermão sobre fama de Robert Kardashian
A maior discrepância entre ficção e realidade é a forma como a família Kardashian é retratada na série. Há uma clara tentativa de enfatizar o fato de que o sobrenome pouco significava para os americanos naquela época e destacar as crianças, os hoje famosos Rob, Kourtney, Kim e Khloé, filhos de Robert Kardashian, amigo e advogado de O.J. Simpson. Em uma das sequências, a família vai a um restaurante que está lotado. Uma funcionária “reconhece” Robert. “Richard Kardovian!”, ela diz antes de furar a fila e acomodá-los em uma mesa. Percebendo que os filhos ficam animados, Robert faz um discurso dizendo que “ser uma boa pessoa e um amigo leal é mais importante do que ser famoso”, uma ironia dos roteiristas da série sobre uma das famílias mais conhecidas da atualidade — e conhecida por nada em especial, famosa apenas pela fama angariada com um reality show.
O ator David Schwimmer, que interpreta Robert, disse em entrevista ao E!News que a cena não passa de ficção. Para Khloe Kardashian, essa ênfase no nome da família seria uma forma de a série se aproximar de um público mais jovem, que desconhece o caso O.J. Simpson, disse ela ao Hollywood Today.
“Eu não sou negro, eu sou O.J.”
Não há relatos de que O.J. Simpson tenha afirmado isso na frente dos seus advogados enquanto enfrentava o julgamento em 1994, como retrata a série. No entanto, a frase teria sido dita pelo astro em pelo menos em duas ocasiões no passado. Ambas foram ditas em 1968, ao comentar sobre uma campanha em favor dos direitos civis dos negros. Harry Edwards, que encabeçava a causa, cita o caso no documentário O.J.: Made in America, vencedor do Oscar de Melhor Documentário, em 2017. O segundo registro, de acordo com o livro de Toobin, foi feito em uma entrevista para o jornal The New York Times.
Batida policial em Cochran
Uma das cenas mais chocantes da série se dá em um “flashback”. Em 1982, o advogado negro Johnnie Cochrane, que se tornaria o principal defensor de O.J. e praticamente uma celebridade 12 anos depois, é abordado por um policial enquanto dirige um carro de luxo em um bairro chique (e de maioria branca), em Los Angeles. Sem um motivo plausível, a autoridade pede que ele pare o automóvel e se inicia uma discussão que termina com Cochran algemado. Dentro do carro, as filhas pequenas do advogado presenciam a cena. Logo em seguida, o policial o solta ao descobrir que Cochran trabalha na procuradoria do município. Em entrevista ao jornal Washington Post, em 1994, o advogado relata um caso semelhante, que, na verdade, ocorreu em 1979 e não em 1982. “Mas eu não duvido que tenha acontecido mais de uma vez”, diz a historiadora Suzane Jardim. Na série, Cochran diz que é a terceira vez que ele é parado em uma semana.
“Extreme makeover” na casa de O.J.
Numa das fases do julgamento, o júri popular precisava visitar a casa onde Nicole foi assassinada e a mansão de O.J. Simpson, em Brentwood, bairro nobre de Los Angeles. Dias antes, os advogados redecoraram a residência do astro. Trocaram fotos do ex-jogador com mulheres e amigos brancos por retratos com pessoas negras. Colocaram também um pôster de uma garota negra indo para a escola, que pertencia a Cochran. Robert Kardashian confirmou em entrevista de 1996 que a mudança serviu para manipular o júri, majoritariamente negro. A defesa queria convencê-lo de que O.J. tinha profunda relações com a comunidade. Isso era fundamental para o caso, que já havia se transformado em uma disputa racial, de negros oprimidos por policiais brancos, deixando o julgamento de duplo homicídio em segundo plano. Tudo isso de fato aconteceu e foi retratado na série. Com duas exceções: O.J. acompanhou o júri na visita em sua mansão, mas não na residência de Nicole. Ali, ele aguardou dentro de um veículo da policia. Além disso, a estátua em tamanho real do jogador, que decora o jardim da residência em Brentwood na ficção, na realidade foi escondida, conforme reportagem do The New York Times de 1995.
Bill Hodgman passa mal no tribunal
No quinto episódio da série, o promotor Bill Hodgman fica nervoso com uma jogada da defesa e passa mal no meio do tribunal. De fato, durante o processo, ele chegou a ser hospitalizado. No entanto, Hodgman sentiu dores no peito durante uma reunião da promotoria e não na frente do juiz, como relatou o jornal Los Angeles Times na época.
Romance entre Marcia Clark e Chris Darden
Os promotores Marcia Clark e Chris Darden jamais confirmaram que tiveram um relacionamento amoroso. Tampouco negaram. Em entrevistas, relatam uma relação intensa, mas ninguém sabe se o romance foi concretizado ou se foi limitado a uma troca de olhares. Em entrevista, Clark contou para Ellen DeGeneres que os dois dançaram e viajaram, mas, pressionada pela apresentadora, preferiu não responder se houve algo além disso. “É um pouco forçada (a forma como a série insinua o romance entre os procuradores). Mas, numa narrativa de ficção, é preciso criar um casal romântico e um vilão”, diz Jardim.
Mark Fuhrman racista
E o vilão eleito pela série foi Mark Fuhrman. Os fatos comprovaram que o policial responsável por encontrar as principais evidências no local do crime era racista e que havia mentido em juízo. Isso foi um dos principais golpes da defesa de O.J. Simpson, que alegava que a polícia de Los Angeles, com longo histórico de repressão aos negros, havia manipulado provas para incriminar o ex-jogador. Em uma série de gravações, ele aparece dizendo 41 vezes a palavra “nigger”, termo extremamente pejorativo para se referir a negros na língua inglesa, algo que ele negou ao testemunhar. Entretanto, na cena final do quinto episódio da série, ele aparece admirando uma coleção de medalhas nazistas. Na época, um outro policial acusou Fuhrman de ter pintado suásticas em seu armário após se casar com uma judia, mas não há provas de que Fuhrman colecionasse objetos com esses símbolos.
Encontros na cadeia
Na série, os encontros entre os advogados de defesa e O.J. Simpson na prisão, às vezes, começam ou terminam com abraços. Na verdade, teoricamente, isso não poderia ter acontecido. O preso e seus visitantes deveriam ser separados por um vidro à prova de balas, sem contato direto. Assim, a cena de amigos jogando poker com o astro na cadeia poderia parecer até absurda. Mas talvez não seja. “Não duvido que O.J. tenha tido privilégios uma hora ou outra. Alguns guardas eram seus fãs”, diz Jardim. No último episódio, a cena em que o ex-jogador autografa uma bola de futebol na prisão, pedido de um dos policiais para presentar o filho, faz parte dos momentos marcantes da série.
As Luvas não serviram
O fato de os advogados serem separados do réu por um vidro à prova de balas na prisão da vida real foi o “insight” necessário para a defesa dar o seu golpe de misericórdia. “Na cadeia do distrito, os advogados de defesa tinham passado meses cumprimentando Simpson com o costumeiro aperto de mão das prisões: o contato de palma com palma contra o vidro à prova de bala. Eles viam as mãos do ex-jogador todos os dias. Agora, de repente, perceberam que as luvas podiam não servir”, conta Toobin no livro que baseou a série. Na frente do jurados (e de todo o país que acompanhava o julgamento como se fosse uma novela), O.J. foi instado a experimentar as luvas encontradas na cena do crime. Com uma dificuldade questionável e usando luvas de borracha por baixo para não comprometer a prova, o ex-jogador não conseguiu vestir as luvas de forma que ficasse confortável. Para muitos, o julgamento terminava ali. Em sua exposição final, Cochran usou o fato para encerrar o caso: “Se não serve, devem inocentar”.