O real e a ficção em The Crown 3: da crise política aos dramas de família
Terceira temporada da série da Netflix acompanha o embate entre esquerda e direita na Inglaterra nos anos 60, enquanto observa os bastidores da realeza
(O texto a seguir apresenta spoilers da terceira temporada de The Crown)
Logo em seu primeiro episódio, a terceira temporada de The Crown mostrou a que veio. Em 47 minutos, o capítulo exibe a ascensão ao poder de um primeiro-ministro de esquerda, o medo da monarquia em sucumbir, a absurda história de um espião da KGB que vivia no Palácio de Buckingham e a morte de Winston Churchill, uma das mais proeminentes figuras da história da Inglaterra. Mais política que suas fases anteriores, a série da Netflix destrincha o intricado momento histórico do Reino Unido entre 1964 e 1977. Sem deixar, claro, de bisbilhotar os dramas – e que dramas – da poderosa família e o peso da coroa sobre suas cabeças.
Confira abaixo o que é real e o que é ficção na nova fase da série The Crown.
Um espião no Palácio
Uma das tramas mais absurdas da temporada é, quem diria, verdade — mas com uma pitada de rumores no final. Sir Anthony Blunt (interpretado por Samuel West) foi um curador de arte da família real e que atuou como espião da KGB durante a II Guerra Mundial. A monarquia desconhecia a vida dupla de Blunt, que foi recrutado pelos soviéticos na década de 1930, quando estudava na Universidade de Cambridge. Em 1939, ele entrou para o exército britânico e, em seguida, para o serviço de inteligência MI5. O espião passava informações secretas para a União Soviética, sobretudo o que os britânicos sabiam sobre os alemães. Em 1945, o então rei George VI, pai da rainha Elizabeth II, elege Blunt para trabalhar para a realeza. Quase dez anos depois, em 1964, o curador, delatado por um americano, fecha um acordo com o MI5, que ofereceu a ele imunidade caso confessasse. Blunt, que já não atuava mais como espião, pois havia se desiludido com o comunismo, confessou, mas continuou vivendo no Palácio de Buckingham e cumprindo suas obrigações por mais 15 anos: até 1979 quando Margaret Thatcher tornou pública a informação. A família real, então, lhe tirou o título de cavaleiro britânico.
O que não se sabe com certeza foi o motivo pelo qual tanto o MI5 quanto a realeza decidiram fazer vista grossa para o curador depois da descoberta. Não manchar a reputação da Inglaterra seria um dos motivos. Outro seria mantê-lo na posição para que a Rússia não desconfiasse que ele foi descoberto. A série prefere a primeira opção misturada com um rumor: Blunt teria subornado príncipe Philip dizendo ter retratos dele feitos por Stephen Ward, um osteopata e artista que se envolveu em um escândalo político e sexual na Inglaterra, e também teria vínculos com a União Soviética – óbvio, uma figura com quem a família real não deveria se relacionar.
Amizade de Harold Wilson com a rainha Elizabeth II
Quando Harold Wilson (interpretado por um ótimo Jason Watkins) vence as eleições e se torna primeiro-ministro da Inglaterra, a rainha (vivida por Olivia Colman) se preocupa: o representante do Partido Trabalhista é de esquerda, ou seja, inimigo da realeza. Para piorar, Wilson está envolto em rumores sobre ter atuado como espião para a KGB. Como mostra a série, de fato, o primeiro-ministro foi investigado pelo MI5 sobre a suposta associação com os soviéticos, o que não passava de fake news. Mas o mais impressionante, e que The Crown capta bem, foi a inesperada amizade de Wilson com Elizabeth II. Contra as expectativas, a dupla se deu muito bem e sabe-se que continuaram próximos mesmo depois do afastamento do primeiro-ministro da política. Biógrafos da rainha dizem que Wilson foi responsável por trazer os pezinhos da soberana para mais próximos do chão. Em troca, ela dava a ele espaço para desabafar sobre os dilemas do parlamento. “É o único momento que posso ter uma conversa profunda com alguém que não quer roubar meu emprego”, disse Wilson. Ele chegou a afirmar também que os momentos de conversa com a rainha eram leves — rumores dizem que ela permitia que o primeiro-ministro fumasse durante os encontros e ainda lhe servia drinks.
Crise com os Estados Unidos – resolvida por Margaret
O segundo episódio direciona os holofotes para a princesa Margaret (agora interpretada por Helena Bonham Carter). A irmã e antagonista da rainha está de férias nos Estados Unidos, lidando com um casamento em frangalhos com Antony Armstrong-Jones (Ben Daniels), em 1965. Ao mesmo tempo, o Reino Unido enfrenta um de seus piores momentos econômicos, com uma dívida de 800 milhões de libras. Quando o primeiro-ministro, Harold Wilson, tenta em vão estreitar os laços com os Estados Unidos e o presidente Lyndon B. Johnson (Clancy Brown), para conseguir um empréstimo, ele implora à realeza que o ajude com uma pitada de diplomacia de luxo. A rainha convida o presidente para um fim de semana no Castelo de Balmoral, na Escócia – convite declinado pelo americano. Margaret se torna a última opção para fazer a ponte com o mandatário.
De fato, Lyndon B. Johnson e Elizabeth II nunca se encontraram pessoalmente – o que faz dele o único presidente americano entre os doze que chegaram ao poder desde a coroação da rainha a não conhecê-la. O motivo desse desencontro, porém, não se sabe. O convite recusado por ele na série é nada mais que ficção. Já Margaret realmente fez a tal viagem e causou em solo americano. Mas, ao contrário do que diz a série, a princesa não foi apenas coberta de elogios pela imprensa. Suas bebedeiras e grosserias foram manchete, assim como alfinetadas que ela disparou por todos os lados contra celebridades de Hollywood — enquanto isso, na Inglaterra, Margaret era criticada por torrar dos cofres públicos 30.000 libras com o passeio. De fato, ela e o marido jantaram com o presidente americano na Casa Branca – foi uma grande festa, mas não há indícios de que tenha sido tão agitada quanto The Crown sugere. Também não existem evidências de que o poder persuasivo de Margaret conseguiu a ajudinha financeira que o Reino Unido precisava – em 1966, porém, o governo americano aprovou o aporte, mas a saída emergencial dos britânicos na época foi apelar para a desvalorização da libra esterlina.
Fotos na banheira
Figura que deu muita dor de cabeça à realeza, Margaret posou para fotos ousadas ao longo da vida. Uma famosa imagem, feita por seu marido, mostra a princesa, com a tiara de casamento, numa banheira – ao que tudo indica, apenas de tiara… A foto é real, mas ao contrário do que mostra a série, ela não foi feita durante a viagem aos Estados Unidos, mas sim em 1962, no apartamento do casal no Palácio de Kensington. A imagem se tornou pública em 2006, numa exposição do fotógrafo.
Tragédia de Aberfan
Um dos melhores e mais cortantes episódios da temporada, o terceiro capítulo narra a tragédia ocorrida em 21 de outubro de 1966 em Aberfan, um vilarejo no País de Gales. Na data, uma escola e parte da vila foram soterradas após o colapso de uma mina de carvão. A avalanche deixou 144 mortos, sendo 116 crianças. Uma ferida aberta na história do Reino Unido, o desastre foi reproduzido com muito cuidado pela produção da série, que ouviu sobreviventes para recriar o caso. Estas pessoas, aliás, foram convidadas para participar de cenas como figurantes, e receberam apoio de psicólogos que trabalharam no set. “Contamos com ajuda de terapeutas para ajudar essas pessoas a recriar um momento tão terrível. Os moradores dali ainda são traumatizados pelo que aconteceu. E descobrimos que antes disso, eles nunca receberam apoio para cuidar da saúde mental”, contou a produtora Oona O’Beirn. Para ser menos invasiva, a produção da série não gravou em Aberfan, mas sim num vilarejo próximo chamado Cwmaman.
O atraso e o choro da rainha
De fato, a rainha levou oito dias após a tragédia para visitar o local. Segundo biógrafos, a soberana se arrependeu desse atraso. Ela foi aconselhada diversas vezes a fazer a viagem, mas teria dito que sua presença mais atrapalharia o processo de resgate do que ajudaria. Coube ao príncipe Philip (Tobias Menzies) representar a monarquia em uma visita oficial – o fotógrafo e marido de Margaret, Antony Armstrong-Jones, também viajou ao local, mas sem uma agenda oficial, apenas para registrar o ocorrido. Os dois ficaram demasiadamente comovidos. O episódio, porém, causou alvoroço entre os fãs da realeza ao sugerir que a lágrima derramada por Elizabeth II na visita teria sido falsa. A liberdade poética do roteiro – já que apenas a própria rainha pode afirmar se chorou ou não – serve para mostrar a dureza e sobriedade da soberana, que poucas vezes ao longo de seu reinado demonstrou emoção ou derramou lágrimas.
A trajetória da princesa Alice, mãe de Philip
Como disse Peter Morgan, criador de The Crown, à revista Vanity Fair, a história da princesa Alice de Battenberg, mãe do príncipe Philip, retratada no quarto episódio, é tão impressionante que nem a ficção daria conta de criar algo parecido. Sendo assim, a série opta pela fidelidade ao acompanhar a trajetória da princesa (vivida aqui por Jane Lapotaire). Alice de fato nasceu no castelo de Windsor e era bisneta da rainha Vitória. Ela se casou com o príncipe grego Andrew, em 1903, com quem teve quatro filhas e um menino, Philip. A família foi forçada ao exílio quando a monarquia grega caiu, em 1917. A situação ficaria mais conturbada na década de 1930, quando a princesa passou por uma crise religiosa. Internada em um manicômio, ela foi diagnosticada com esquizofrenia e submetida a tratamentos bizarros, como o uso de raio-x direcionado ao seu ovário, para que ela perdesse a libido. Livre do sanatório, ela se tornou freira, vendeu tudo o que tinha e fundou um mosteiro em Atenas para cuidar dos pobres e doentes. Em 1967, quando a Grécia sofreu um golpe de Estado, ela foi levada Palácio de Buckingham, onde ficou até sua morte, em 1969.
O fiasco do documentário da BBC e o jornalista do The Guardian
Se The Crown conquista espectadores ao humanizar uma das famílias mais poderosas do mundo, o mesmo sucesso não foi alcançado pelo documentário Royal Family, exibido em 1969 pela BBC. Como mostra a série, os anos 1960 não foram fáceis para a realeza. Uma grave crise econômica e movimentos que quebravam com as regras da, por assim dizer, família tradicional Inglesa, colocaram a monarquia em contraste com o mundo real. As críticas ao documentário foram muitas, e de ambos os lados: desde os que viam a realeza como algo que deveria permanecer com sua aura de mistério e luxo — e não retratada em um filme —, até os que ficaram irados ao ver para onde parte do dinheiro dos impostos é destinado. A rainha Elizabeth II, então, exigiu que o longa nunca mais fosse exibido. Para mostrar o posicionamento antimonarquista mais contestador, a série personificou as alfinetadas em um personagem fictício, o jornalista John Armstrong, que representa a postura histórica do tradicional jornal inglês The Guardian, que, até hoje, não perde a chance de alfinetar a realeza.
Golpe frustrado
Na escalada totalitária da década de 1960 pelo mundo, a Inglaterra ficou livre de um golpe de Estado – mas foi por pouco, sugere The Crown. O quinto episódio da terceira temporada, batizado simplesmente de Golpe, mostra um conluio de homens da elite inglesa infelizes com o governo do primeiro-ministro de esquerda Harold Wilson. O articulador do golpe frustrado foi Cecil King (Rupert Vansittart), diretor do Banco da Inglaterra e de um conglomerado de mídia. Ele tentou convencer Lord Mountbatten (Charles Dance), tio do príncipe Philip, a se bandear para seu lado e liderar o movimento. A base democrática inabalável do Reino Unido, porém, foi o primeiro empecilho: que só poderia ser quebrado pela rainha, alguém com apelo popular e que teria o poder de dissolver o parlamento e nomear um novo primeiro-ministro, se achar necessário. A história na vida real é nebulosa e baseada em muitos rumores. Sabe-se que, sim, Cecil King tinha pavor de Wilson e tentou criar um movimento em 1968 que o destituísse do cargo. Sabe-se também que de fato Mountbatten foi convidado a fazer parte do movimento. A série, porém, cria todo o resto, inspirada em teorias da conspiração e diversos livros — entre eles, a autobiografia de Hugh Cudlipp, jornalista que trabalhou por duas décadas no Daily Mail, subordinado de King, que entrevistou os envolvidos no caso.
Philip, os astronautas e a crise de meia-idade
No sétimo episódio, intitulado Poeira Lunar, The Crown faz um paralelo entre um evento real, a chegada do homem à Lua, em 1969, e uma crise de meia-idade do príncipe Philip. O ex-piloto fica obcecado pela missão Apollo 11 e, quando os três astronautas (Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins) visitam o Palácio de Buckingham, ele solicita uma reunião particular com o trio – que o deixa decepcionado ao perceber que são apenas jovens regrados, e não grandes aventureiros. De fato os astronautas visitaram o palácio durante sua turnê mundial e se encontraram com a rainha. E sim, Neil Armstrong estava resfriado: ele chegou a espirrar diante da soberana. Não há evidências, contudo, de que uma reunião privada entre os rapazes e o príncipe tenha acontecido, ou que ele tenha julgado a capacidade intelectual dos americanos. O que é real no episódio é que Philip passou por uma espécie crise ao se aproximar dos 50 anos de idade – que teria sido amenizada pela amizade com o decano Robin Woods (que se tornou, mais tarde, bispo anglicano, interpretado na série por Tim McMullan). Os dois fundaram juntos a St. George’s House — um refúgio para religiosos em crise que, com o tempo, se tornou uma espécie de “coach” para pessoas influentes da sociedade inglesa em busca de crescimento espiritual e mental.
Margaret: o caso extraconjugal e a tentativa de suicídio
A conturbada vida da princesa Margaret pauta o último e interessante episódio da terceira temporada, batizado de Cri de Coeur (grito por socorro, em tradução livre da expressão francesa). No capítulo, a princesa sofre por ser deixada de lado pelo marido, que está tendo um caso. Em uma viagem para espairecer, ela conhece o bonitão Roddy Llewellyn (Harry Treadaway), 17 anos mais novo que ela. Ao fim, solitária, ao encarar o fim do casamento e do caso, ela toma ansiolíticos no que parece ser uma tentativa de suicídio.
Todos os elementos do episódio são reais, mas são também um recorte de uma longa história condensada em uma ordem cronológica diferente. Tanto Margaret quando Antony Armstrong-Jones tiveram casos extraconjugais. O fotógrafo manteve um longo caso com Lucy Hogg (Jessica De Gouw), chamada de “coisa” pela princesa. Já Margaret se encantou especialmente por Roddy, um garotão com talento para jardinagem — o relacionamento deles durou bem mais que alguns dias como retratado na série: eles ficaram oito anos juntos. Os dois se conheceram em 1973 e as fotos do casal no Caribe, que provocou um saboroso escândalo para os tabloides, aconteceu três anos depois, em 1976 – Antony, então, aproveitou o babado para pedir o divórcio, que se concretizou em 1978, um ano depois do jubileu de prata da rainha, retratado na série em meio a todo esse imbróglio. Margaret realmente tomou ansiolíticos em excesso – especula-se, porém, que tenha sido por ciúme de Roddy.
Curiosidade: a cena em que Margaret leva o rapazote para comprar roupa de banho, e insiste para que ele fique com uma sunga estampada com a Union Jack (a bandeira do Reino Unido), é pura verdade.