Pele de cordeiro
Jair Bolsonaro cultiva viva a perspectiva de ruptura, por mais improvável que seja
É clássica a cena do bandido que bate a carteira do transeunte e sai gritando “pega ladrão” para tentar enganar a polícia e assumir o lugar da vítima. A imagem é muito usada para ilustrar inversão de valores em discursos políticos e se adéqua perfeitamente ao figurino adotado pelo presidente Jair Bolsonaro e companhia nos preparativos das manifestações do próximo dia 7.
A data pode ou não prenunciar um setembro negro. Vai depender de as multidões — sim, a coisa está sendo preparada para impressionar — incorporarem a troca de papéis mostrando-se convincentes na transmutação de defensores da repressão em vítimas da opressão.
Será bonito de ver. A começar do capitão da banda, será preciso uma dose oceânica de autocontrole geral. Os ativistas de variadas causas, entre caminhoneiros, evangélicos, policiais, militares, ruralistas e motociclistas, terão de evitar dar um pio sequer sobre a deposição de ministros do Supremo Tribunal Federal “na marra”.
Falar em quarteladas e invasões, nem pensar. A palavra “golpe” poderá ser dita, desde que aplicada na contramão, para firmar fileiras contra os que lhes querem tolher a liberdade de se expressar violentamente em prol de um país de administração militar.
Nesse Brasil tido como ideal a imprensa é risonha e franca, o Legislativo aprova impeachments de juízes desafetos, não importuna o governo com CPIs, e o Judiciário faz as vontades do presidente. De acordo com a novilíngua da turma, na independência dessa gente é que germina o autoritarismo, viceja a intolerância.
Ameaças explícitas à possibilidade de não realização de eleições em 2022 devido à rejeição do voto impresso na Câmara ficam de fora do manual. Ora, ora, ninguém quer melar se o resultado for adverso, não é mesmo? Vai se falar no assunto, mas apenas como garantia de maior segurança, jamais para desqualificar o sistema em vigor nem colocar a Justiça Eleitoral sob suspeita a fim de sustentar a escrita da fraude anunciada.
“Batedores da carteira da democracia gritam ‘pega ladrão’ em tardia e inútil troca de papéis”
O guia da ocasião dita que nada há de impróprio ou intimidador na presença de policiais como manifestantes em defesa da democracia que lhes convém. Afinal, estarão à paisana e, se porventura comparecerem armados, estarão no direito de cidadãos autorizados ao porte e de todo modo precavidos para quaisquer eventualidades.
Parte nobre do roteiro é a afirmação em prol da legalidade. Para efeito de propaganda enganosa fica combinado que aos militantes da causa bolsonarista não interessa nenhum tipo de ruptura, mas… ninguém é de ferro. A palavra de ordem é o respeito à Constituição, mas… tudo tem limite. São palavras ditas e repetidas pelo chefe a quem o futuro se desvenda como morte, prisão ou vitória. Só não põe em cena a derrota, num indicativo de que não vai dar trégua.
E aí mora o xis da questão. A conjunção “mas” introduz frases de significado oposto ao dito na oração anterior, funciona como senha a autorizar de maneira dissimulada a exacerbação. Esta, por mais que o momento seja de gritar “pega ladrão”, abriga sem disfarces a natureza do escorpião.
Daí a razão do estado de alerta permanente — mais que isso, crescente — das autoridades, em cujos radares já entrou a possibilidade de o presidente da República não cumprir decisões judiciais, tachando-as de “ilegais”. Leva-se em conta também a hipótese de Bolsonaro não atender a pedidos de ajuda de governadores para conter possíveis distúrbios no ambiente eleitoral.
Diante disso, estaria criado o desejado (por ele) impasse para o qual, apontam ex-ministros da Defesa, não haveria previsão legal. A solução estaria, segundo recente artigo do ministro Ricardo Lewandowski, na aplicação de preceitos da Constituição contra patrocinadores da quebra da legalidade. Em tese, tudo certo. Na prática, porém, uma situação de excepcionalidade estreita o espaço da tomada de decisões referidas na lei. Em circunstância de insegurança pública, a sociedade pode se tornar mais tolerante a medidas autoritárias.
Jair Bolsonaro cultiva viva a perspectiva de ruptura, por mais improvável que seja. Ele é fruto da desorganização social, do extremismo político e da desarticulação dos partidos. Não tem interesse algum em organizar nem pacificar. Planta nascida do lodo, é no ambiente do pântano que o presidente do Brasil vê suas chances de sobreviver.
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Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754