O abuso original
Vítimas de abusos desenvolvem mais facilmente a dependência de alimentos açucarados
É quase impossível não falar de peso no começo do ano. Depois das comilanças de Natal e réveillon, janeiro costuma ser o mês de se preocupar com a silhueta. O assunto rende brincadeiras e memes — você provavelmente já recebeu algum nos primeiros dias de 2021. Mas a preocupação com o peso não é piada ou apenas questão estética. A obesidade é um problema sério, cada vez mais presente na população brasileira, e merece, portanto, toda nossa atenção. Ninguém sabe ao certo o que leva a uma alimentação desregrada, embora não faltem estigmas: muita gente pensa que o obeso é necessariamente alguém indisciplinado, exagerado e preguiçoso, pois não se exercita. A verdade, porém, é que o sobrepeso pode ter raízes psicológicas profundas.
Na Universidade de Kobe, no Japão, pesquisadores da Escola de Medicina analisaram os hábitos de cerca de 20 000 adultos e fizeram importantes descobertas. Ao que tudo indica, o acúmulo de gordura corporal entre as mulheres tem alguma relação com experiências de violência na infância. Sofrer agressões físicas, ser vítima de comentários maldosos e insultos dentro da própria casa, todos esses são eventos que poderiam levar, anos mais tarde, ao excesso de peso.
O estudo, publicado no finalzinho de 2020, foi o primeiro do tipo realizado no Japão, mas confirma uma ideia já apontada por vários especialistas de outros países: situações de abuso físico, psicológico, sexual e até de negligência estão, sim, correlacionadas à obesidade. A criança vítima de abuso desenvolve mais facilmente a dependência de alimentos açucarados ou ricos em gordura. E, quando adulta, ela tende a comer demais em situações de stress.
“Vítimas de abusos desenvolvem mais facilmente a dependência de alimentos açucarados”
Esse é um problema que interessa a todos nós, em especial às mulheres, que acabam sendo as maiores vítimas desse terrível mecanismo de compensação psicológica. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada três mulheres já sofreu violência física e/ou sexual. Na pandemia do coronavírus, com muitas famílias em confinamento, aumentam os episódios de violência doméstica, inclusive contra crianças. Além de abusadores e vítimas estarem fechados em um mesmo ambiente por mais tempo, a diminuição do contato com pessoas de fora da casa dificulta o reconhecimento e a denúncia dos casos.
Se quisermos mudar esse cenário, é preciso discutir abertamente o problema, sem tabus. Hoje entendo como minha própria história, aos 7 anos, contribuiu para que eu chegasse aos 120 quilos — e como só pude me livrar da obesidade, perdendo a metade daquele peso, quando reconheci os mecanismos psicológicos por trás da minha alimentação desregrada. Esse processo de reconhecimento das causas da obesidade, tão importante para eliminar o preconceito que atinge homens e mulheres acima do peso, só funciona se a sociedade estiver disposta a um diálogo aberto.
Justamente por isso, tento aqui ajudar a construir esse diálogo. A luta contra a gordura indesejada às vezes exige um mergulho profundo em nossos traumas. Felizmente, com força de vontade e uma rede de apoio familiar e profissional, é possível fazer esse mergulho e voltar com segurança à superfície.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721