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Por Coluna
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Vozes urbanas

Uma árvore enorme gritando num cartaz pendurado nela mesma, em letras vermelhas e pretas sobre fundo branco: “SOCORRO! ESTOU CAINDO”

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 19h32 - Publicado em 28 jul 2019, 07h07

Heraldo Palmeira

Dia de outono, relógios apontando para a hora do almoço. Todos nós cuidando das nossas vidas. O tráfego normal na grande avenida que corta o bairro e lhe serve de eixo.

No intervalo de dois quarteirões, tudo correndo absolutamente igual nos estacionamentos, pontos de táxi, lanchonete de comida árabe, despachante, açougue, mercearia, hortifrutigranjeiros, restaurante e loja de produtos naturebas, estúdio de pilates, estúdio fotográfico, assistências técnicas de eletrodomésticos e eletrônicos, chaveiro, restaurante popular e lojas de brinquedos educativos, materiais elétricos e de construção.

Numa das oficinas mecânicas, uma kombi azul e branca da última série está sob cuidados intensos, motor no chão — passa na minha cabeça aquele maravilhoso filme de despedida que a fábrica mandou produzir quando encerrou a produção da velha perua.

A lotérica cheia de sonhadores do grande prêmio em disputa. A floricultura dividida entre natureza viva e natureza morta, algumas abelhas em pleno ofício de garimpo das suas delicadezas.

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Aqui e acolá, aquelas lojinhas que a gente nem sabe direito o que vendem. A coisa de passar na porta delas todos os dias, saber que estão ali, mas a distração de nunca olhar para dentro.

A loja de bugigangas domésticas, a frutaria, o ponto de táxi onde alguns dos motoristas ora estão com o ar-condicionado “com problema desde ontem” há mais de seis meses ora esqueceram a maquininha de cartão. Só nunca esquecem de reclamar dos aplicativos que viraram concorrência indigesta.

A padoca do outro lado da rua — a televisão de cachorro na calçada fazendo salivar por aqueles frangos assados rodando nos espetos —, frente a frente com o salão do barbeiro mais curioso que conheço.

Um daqueles ônibus articulados, enormes, para no ponto em frente ao salão. De repente, uma freada, o desassossego, um homem vociferando, um murro dado na lataria do táxi, os berros do motorista em resposta aos impropérios do outro.

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Os velhos erros de sempre. A grande avenida de mão dupla, faixas amarelas contínuas. Ônibus enorme parado. O táxi impaciente resolve ultrapassar. O homem impaciente resolve atravessar a rua e sai de trás do ônibus. Era dia de vida e ele não morreu atropelado.

Depois que ele e o taxista perceberam que nenhum era mais homem do que o outro, cada um seguiu seu rumo. O carro subindo a grande avenida e sumindo ladeira acima. O homem entrando na padoca. O ônibus seguindo a rota da linha com seus passageiros com olhos curiosos lançados pelas janelas… Cada um a seu modo querendo desacelerar o coração depois do enorme susto.

O barbeiro saiu para a calçada com a cara assustada, os cabelos naquela cor da asa da graúna, beirando o negro da graxa de sapato Nugget, e me encarou com sua sentença: “A culpa foi do táxi, que fez uma ultrapassagem proibida”.

“A culpa foi dos dois. O homem atravessou fora da faixa, num local de risco, saindo de trás de um ônibus” — respondi impaciente, talvez incentivado por uma certa implicância com o curioso profissional.

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Era ranço antigo, de quando cheguei para morar no bairro e ele me crivou de perguntas indiscretas dentro da padoca. Até que perguntei se ele era investigador de polícia ou trabalhava no censo e a gargalhada geral o deixou sempre cuidadoso comigo, respeitando uma linha divisória imaginária desde então.

Segui meu caminho, uma senhorinha me parou logo adiante, aflita. “De quem foi a culpa?” — quis saber. “Da pressa impaciente dos dois” — respondi. Ela fez uma careta e notei que ficou processando aquele jogo de palavras, como se esperasse uma resposta mais parcial, com partido tomado.

Parei na esquina, aguardando o sinal. O casarão amarelo, reformado para abrigar a agência de viagens dominando a cena. Uma árvore enorme gritando num cartaz pendurado nela mesma, em letras vermelhas e pretas sobre fundo branco: “SOCORRO! ESTOU CAINDO”. Assim em maiúsculas assustadoras, aos gritos!

Passei na frente do restaurante refinado, a lanchonete lendária lá na esquina do outro lado, instalada ali desde os anos sessenta. O pet, a sapataria feminina, o consultório do veterinário, o restaurante japonês, a livraria de rua — uma raridade nos tempos de hoje — e chego à minha esquina.

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Estou envelhecendo sem pressa e a vida tem colaborado nisso. Fico aqui no meu canto e ela lá no dela, parece ser um bom acordo. De cavalheiros. Quando rezo, peço que tenha paciência comigo. Não vou me negar a nada, só quero ir devagarinho. Abandonei o tempo da ansiedade, deixo a correria para a meninada que ainda não descobriu que não vai chegar a lugar nenhum a não ser envelhecer — porque muitos nem chegarão aqui.

Por isso, faz tempo que tenho me preocupado em ser gente. Pode parecer esquisito, mas não é nada complexo, se limita a prestar atenção naquilo que passa despercebido quando a gente pensa que está sendo a pessoa mais importante do mundo — bobagem!

Olhar as pessoas é uma das coisas mais simples, que menos se faz e que mais recompensa. É bom pisar na rua mais cedo e os meninos do sujinho acenarem do outro lado com a pergunta “Vem almoçar hoje? É rabada! Tem bisteca também!”.

Um dos garçons, bem jovem, costuma me perguntar coisas, falamos de música e assuntos gerais. Tem sempre um chiste, damos boas risadas tirando onda com o resto da turma. Os relatos das prosas noturnas da padoca já chegaram por essa parte mais alta da rua, os meninos são todos amigos e, no fim das contas, ganhei uma nova turma da vida.

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Entrei no sujinho cumprimentando todos que trabalham ali. Estou em casa, tanto quanto na padoca. A ponto de o velho garçom, em várias ocasiões, almoçar comigo na mesma mesa porque ambos gostamos de deixar a prazerosa operação de talheres para mais tarde, quando o movimento já diminuiu e as coisas estão mais calmas. E a conversa simples é uma maravilha!

O lugar estava lotado, a clientela de sempre. A gente que trabalha nos serviços gerais pelos arredores. Sentei de frente para a televisão, normalmente sintonizada em resenhas esportivas, os analistas quase sempre discutindo e colaborando com o burburinho.

O garçom bem jovem começou a falar de música, e de repente me disse que tinha algo que gostou muito para me mostrar. Mudou a sintonia e soltou “The thrill is gone”, gravada no Crossroads Guitar Festival 2010, em que BB King recebe no palco Eric Clapton, Robert Cray, Jimmi Vaughn, Johnny Winter, Ron Wood e uma penca de guitarristas.

Claro que houve um estranhamento no ambiente habituado às paixões futebolísticas, mas não demorou para que o vozerio diminuísse, os olhares estivessem capturados pelos músicos e vários dedos tamborilassem sobre as mesas no compasso do blues.

A clientela foi terminando o almoço e ganhando a rua para cuidar da vida. Estiquei até tomar o cafezinho coado, “está incluído no almoço”, e fui embora feliz.

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