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Um prato de pílulas, queijo de cabra nortista e conversa de doido no café da manhã com Sarney

Publicado em 7 de dezembro de 2009 Foi o jornalista Getúlio Bittencourt, chefe da sucursal de VEJA em Brasília quando eu era editor de Política, quem disseminou a praga do café da manhã com figurões federais. A novidade surgiu no início dos anos 80. E pegou, para desconsolo dos passageiros da noite. Horários historicamente obscenos para jornalistas ─ sete, sete e meia da […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 03h33 - Publicado em 3 jul 2014, 17h49

Publicado em 7 de dezembro de 2009

Sarney-anunciando-Plano-Cruzado-1986

Foi o jornalista Getúlio Bittencourt, chefe da sucursal de VEJA em Brasília quando eu era editor de Política, quem disseminou a praga do café da manhã com figurões federais. A novidade surgiu no início dos anos 80. E pegou, para desconsolo dos passageiros da noite. Horários historicamente obscenos para jornalistas ─ sete, sete e meia da madrugada ─ foram logo incorporados à rotina de trabalho. Culpa de Getúlio Bittencourt, meu velho amigo que morreu tão cedo.

Fui a Brasília em setembro de 1982 para um giro pelo coração do poder. Num fim de noite, veio com a sobremesa a notícia de que o dia seguinte começaria com a aurora.

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─ Temos um café da manhã ─ avisou Getúlio na mesa do restaurante. ─ Com o Sarney. Sete e meia lá no Lago Sul.

O senador José Sarney era presidente do PDS, filhote da Arena tão obediente aos chefes militares quanto a mãe. Pelo andar da carruagem, o regime não iria muito longe: o general João Figueiredo assumira a presidência da República para concluir a abertura política iniciada por Ernesto Geisel. Imaginava-se que os paisanos a serviço dos donos do poder, como Sarney, perderiam inteiramente a importância que nunca fora muita. Para que aquela conversa?

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─ Para você conhecer o Sarney ─ replicou Getúlio.

Mas às sete e meia?.

─ Ele gosta desse horário.

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Cheguei sem atraso para o primeiro café-da-manhã com o senador José Sarney, como sem atraso chegaria para outros cinco ou seis que Getúlio combinou. Ou porque eu estava sempre grogue pela noite mal dormida, ou porque o anfitrião gastava o tempo tratando de irrelevâncias, não me lembro direito do que se conversou.

─ Tremenda perda de tempo, hein, parceiro? ─ dizia ao chefe da sucursal depois de cada encontro.

Repeti a provocação até que Sarney se juntou aos dissidentes, deixou o PDS em 1984, virou vice de  Tancredo Neves e acabou na presidência da República, eleito pelos micróbios do Hospital de Base de Brasília. Telefonei para Getúlio, que depois seria secretário de imprensa do chefe de governo, para formalizar a rendição:

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─ Você é um profeta.

─ Ele até vai continuar te recebendo, mas naquela hora de sempre ─ tripudiou o inventor do café-da-manhã federal.

O cardápio não era melhor que o horário: queijo de leite de cabra do Maranhão, queijo-de-Minas, pão, café com leite e o prato de pílulas coloridas sempre ao alcance da mão do hipocondríaco militante. Era isso o que havia sobre a mesa, comprida como as dos banquetes festivos do Lions, na manhã de 1988 em que voltei a encontrá-lo no Palácio da Alvorada.

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Sentados frente a frente no meio da mesa inverossímil, eu combatia o sono, ele combatia a realidade com bastante animação. Comia e falava, falava e bebia. Entre um pedaço de queijo e um gole de café com pílula, dissertou longamente, sem pausas nem vírgulas, sobre o espetáculo de desenvolvimento patrocinado pelo Plano Cruzado.

A conversa me pareceu muito doida. A euforia dos primeiros meses acabara havia quase dois anos, os “fiscais do Sarney” estavam aposentados há muito tempo, o país ainda se recuperava do que economistas chamam de crise de desabastecimento. O delegado Romeu Tuma esquecera a temporada de caça a rebanhos supostamente escondidos por sabotadores. Embora muito mais caros, estavam de volta a carne que sumira, o frango que desaparecera e outros produtos. Mas também estava de volta a inflação obscena, que avançava a galope.

A coisa em 1988 andava feia, achava o Brasil inteiro. Menos o presidente da República.

─ O importante é que quem comprou uma geladeira continua com a geladeira ─ espantou-me Sarney no penúltimo parágrafo da discurseira.

─ Mas não há o que guardar na geladeira ─ ponderei. ─ Ninguém tem dinheiro para comprar.

Ele revidou com um olhar compassivo e o golpe de misericórdia:

─ Só que agora tem a geladeira. E antes não tinha a geladeira. Está provado que a vida melhorou.

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