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‘Márcia Honorato não deve morrer’, um artigo de Daniel Aarão Reis

TEXTO PUBLICADO NO GLOBO DESTA TERÇA-FEIRA Daniel Aarão Reis Nas comemorações realizadas em Nova York, em 11 de setembro passado, foi emocionante o momento em que se leram os nomes e os sobrenomes dos mortos no atentado às torres gêmeas do World Trade Center. Gravados na pedra, entoados em voz alta, era como se os […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 10h42 - Publicado em 21 set 2011, 14h09

TEXTO PUBLICADO NO GLOBO DESTA TERÇA-FEIRA

Márcia Honorato

Daniel Aarão Reis

Nas comemorações realizadas em Nova York, em 11 de setembro passado, foi emocionante o momento em que se leram os nomes e os sobrenomes dos mortos no atentado às torres gêmeas do World Trade Center. Gravados na pedra, entoados em voz alta, era como se os presentes quisessem dizer: vocês desapareceram, mas estão conosco, em nossa memória, e nela e na pedra permanecerão enquanto os humanos tiverem capacidade de evocar.

Quando tem nome e sobrenome, a morte de uma pessoa adquire uma espécie de espessura. Na identificação, uma tentativa de lutar contra o pó e as cinzas, o anonimato, o esquecimento.

A bonita cerimônia fez-me recordar um livro de Yves Courrière, publicado há algumas décadas, bem escrito e documentado, sobre a guerra que os argelinos travaram pela independência, contra a pretensão colonialista da sofisticada e civilizada França. Referindo-se aos colonos franceses, mortos pela guerrilha argelina, o autor, sempre que possível, cuidava de identificá-los, com nome e sobrenome, proporcionando ao leitor uma sensação de mal-estar, como se conhecesse as pessoas que estavam morrendo. Uma experiência penosa, capaz de suscitar interesse e compaixão. No entanto, quando falava dos mortos argelinos – cerca de um milhão em 8 anos de guerra, muitos enterrados vivos, outros, queimados por bombas incendiárias -, talvez por desconhecimento, ou distração, ou simplesmente porque eram muito mais numerosos, os nomes eram quase sempre substituídos por números. Frios. Os números, frios. Em vez dos nomes, quentes. De sorte que a sensação que se tinha era que os argelinos passavam melhor e mais levemente para a eternidade do que os franceses. A chave da diferença era que uns tornavam-se anônimos, sem nome, nem sobrenome. Que os outros, os franceses, tinham.

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De fato, os nomes e os sobrenomes podem salvar um morto do esquecimento. Mas podem igualmente salvar uma vida.

A vida, por exemplo, de uma pessoa que tem nome e sobrenome: Márcia Honorato. Felizmente, está viva. E esperamos que viva continue. Mas ela está ameaçada de morrer. Não de morte natural, mas assassinada.

Quem é Márcia Honorato?

Ela faz parte da Rede contra a Violência do Estado do Rio de Janeiro e também da Rede Nacional de Familiares das Vítimas do Estado.

Desde 2005, há longos seis anos, quando policiais militares mataram 29 pessoas entre Nova Iguaçu e Queimados, resolveu entrar numa luta que não poucos consideram insana: levar à Justiça os responsáveis pelos desmandos. Cerca de dois anos depois, em abril de 2007, recebeu em casa a visita de dois homens. Um deles esfregou uma arma de fogo em seu rosto e perguntou: “Você é um anjo, está querendo morrer?” Ela teve então que se esconder: largou casa, filhos, família e atividade profissional. Perambulou por aí até que, um pouco mais de um ano depois, a partir de junho de 2008, inscreveu-se no Programa Nacional de Proteção aos Direitos Humanos/PNPDH, uma espécie de clandestinidade oficial, se o paradoxo é permitido, pois, em tese, clandestinos são, ou deveriam ser, os que vivem à margem da Lei, acuados pelo Estado. Mas, no caso de Márcia, enquanto os agentes da Lei, que a ameaçaram de morte, permaneciam trafegando e traficando à luz do dia, em nome do Estado, ela caiu na clandestinidade, protegida por um programa oficial.

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Mas a situação, em vez de melhorar, piorou. Não a encontrando mais, os caçadores ameaçaram sua família. Entraram na linha de mira os filhos, a sogra e o ex-marido, chamados impudicamente de “vítimas colaterais”. De sedentários, com domicílio conhecido, todos viraram nômades. Pulando de galho em galho, em moradias provisórias, precárias, arriscadas. Sem teto e sem segurança. Sob proteção, mas desprotegidos, à deriva.

Em julho deste ano, Márcia tentou falar pessoalmente com a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, durante as homenagens que se fizeram às vítimas da Chacina da Candelária. Não foi possível. Disseram-lhe que o seu caso estava “resolvido”. Que não fosse inadequada. Se continuasse importunando, poderia acabar sozinha.

No último dia 12 de setembro, um dia depois das homenagens aos mortos de Nova York, ela foi novamente vítima de um duplo atentado: um automóvel – com as mesmas características – tentou atropelá-la duas vezes no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Seus ocupantes, ostensivamente, usavam capuzes. Entre uma e outra tentativa, apareceram outros PMs com atitudes intimidativas.

Márcia está com a vida em perigo. Faz lembrar os versos amargos da poeta Dinha, do Parque Bristol, da periferia de São Paulo: “De aqui, de dentro da guerra, qualquer tropeço é motivo”. Márcia tropeçou em mãos assassinas. Mas continua firme, embora tenha a morte anunciada, prometida e jurada. Ainda segundo a Dinha: “A morte te chama, te atrai, te cobiça”.

Ela tem um único trunfo: tem nome e sobrenome. Assim como as autoridades que têm responsabilidade por protegê-la: Dilma Rousseff, Maria do Rosário, Sergio Cabral, Eduardo Paes. Que detenham as mãos assassinas dos encapuzados, anônimos e sem-lei. É demasiado exigir-lhes que retirem Márcia da clandestinidade, recriando condições para que ela possa exercer efetivamente os direitos – que são seus – de cidadã?

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Veremos daqui a alguns dias a reedição do assassinato da juíza Patrícia Acioli? Márcia Honorato não deve morrer, não pode morrer e não vai morrer. Sob pena de esta cidade, apesar da Copa e das Olimpíadas, virar mesmo, como denuncia a poeta da periferia, um cemitério geral de pessoas. Mesmo que estejam vivas.

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