E o interesse nacional?
O banimento de Trump exige um debate sobre princípios e convicções
O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse. Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para o presidente americano Donald Trump.
Alguns até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta — ou com medo — da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e aqui, vibrou.
Mas e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados Unidos. Nesse jogo, porém, nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas nos Estados Unidos sem que ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?
Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.
“O que ganhamos se as big techs puderem eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”
Um ponto de quem apoia o banimento é as redes sociais serem propriedade de empresas privadas, podendo, portanto, decidir o que vão, ou não, deixar postar. Mas se as empresas devem ter essa liberdade, junto deve vir a responsabilidade pelo conteúdo que permitem veicular em suas plataformas. Além do mais, elas operam em regime de monopólio. Não cabe aqui o argumento do livre mercado.
As big techs querem ser tratadas estritamente como empresas de telecomunicações e tecnologia? Então o jogo será outro. A companhia telefônica não pode ser responsabilizada pelo que dizemos ao telefone ou escrevemos nas mensagens de texto. Em compensação, tampouco pode cortar a linha do assinante por discordar do que ele diz ou escreve. Só o Estado, por meio da Justiça, deve ter tal poder. Exatamente pelo fato de o Estado e a Justiça não serem propriedade privada. Pelo menos na teoria.
Talvez seja ilusão pedir que esse debate aconteça aqui no Brasil em torno de princípios e convicções, num tempo em que eliminar o adversário é a única regra válida do jogo político, um jogo, aliás, no qual ambos os lados se pretendem gladiadores em defesa da liberdade. Seria cômico se não fosse trágico. Então que pelo menos não sejamos inteiramente submissos como nação a um poder que nos escapa.
Somos um país grande, com território, população e recursos econômicos suficientes para pretender um bom grau de autonomia nacional e projeção global. Mas esse episódio exibe qual é talvez o nosso principal obstáculo: a absoluta incapacidade de enxergar por cima das momentâneas disputas políticas e entender onde está o interesse nacional.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721