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Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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Fala de Zuckerberg seria linda se ele fosse CEO dos EUA, não do Facebook

Para livrar a empresa, um monopólio, de interferências, o magnata despreza questões centrais e finge ser um paladino. Por que isso importa a brasileiros?

Por Filipe Vilicic Atualizado em 17 out 2019, 18h01 - Publicado em 17 out 2019, 17h36

Hoje (17), há pouco, Mark Zuckerberg realizou um pronunciamento realmente impactante, em discurso na Universidade de Georgetown (EUA). “Alguém me disse que os Founding Fathers viam a liberdade de expressão como o ar. Ninguém sente falta, até que suma”, proclamou Zuck, em entonação que realmente transpirava um cheiro de “Founding Father”. Quem eram os tais Founding Fathers? Esse é o apelido dado ao grupo de estadunidenses que, no fim do século XVIII, enfrentou a Inglaterra e conquistou a independência dos Estados Unidos. A referência em que o criador e CEO do Facebook se apoiou representa bem o tom de seu discurso. Zuckerberg se portou como um paladino da liberdade de expressão, um guerreiro contra as ditaduras de todo o planeta, a salvaguarda da opinião de todos nós. O problema: por trás do verniz, a verdade é que ele não é nada disso.

Zuckerberg não é John Adams, Thomas Jefferson, muito menos um Benjamin Franklin. Ele está mais para Rockefeller ou Bill Gates. E isso não é uma crítica direta à figura. Rockefeller e Gates são memoráveis, admiráveis, em muitos sentidos. Contudo, tratam-se de magnatas monopolistas, defensores de interesses individuais e corporativos. Estão longe, muito longe, de serem escudos da democracia. Aliás, pelo contrário: nos três casos, em diversos momentos, portaram-se como agressores do sistema democrático. Isso porque Rockefeller, Gates e Zuckerberg não são, digamos assim, CEOs dos EUA – apesar de em alguns lapsos parecerem querer ser.

O mandachuva do Facebook desfilou frases de efeito. Para ele, a rede social seria uma forma de “dar voz”, “garantir a liberdade de expressão”. Tentar enfrentar o Facebook, pela lógica, seria “mais danoso à democracia do que qualquer tipo de discurso”. Quer saber um tipo de discurso danoso à democracia? O de Zuckerberg em Georgetown.

Ocorre que o magnata inverte valores, fingindo ser papel dele promover a liberdade de expressão não só nos EUA, como em todo o planeta (?!?!?!). Contudo, ele parece ter se esquecido dos reais problemas que envolvem sua criação.

Primeiro: o Facebook é um monopólio. Em acréscimo, são os algoritmos do site que decidem quais tipos de discursos, de mídias, de celebridades, de falas, de políticos, merecem destaque maior, ou menor, na plataforma. Na prática, isso transforma a invenção, aliás, não numa plataforma, mas em uma mídia. Aqui ao se considerar como pensadores das célebres escolas de Toronto e Chicago definiam “mídia”: os poderes mediadores da estrutura de valores simbólicos que rege uma sociedade.

O empreendedor parece encenar que não tem esse papel. Seria ele apenas um microfone para a sociedade? Nada disso. O Facebook atua como mediador de discursos, claramente privilegiando uns, desprivilegiando outros.

A constatação não é simplesmente jogada ao ar. Chris Hughes, também um dos criadores do Facebook (e ex-amigo de Zuckerberg), já apontou, publicamente, e com “raiva e responsabilidade”, que o produto que deixou ao mundo é uma “ameaça à democracia”. Nas palavras de Chris Hughes: “Controla as três das principais plataformas de comunicação – Facebook, Instagram e WhatsApp – (…) O conselho do Facebook é mais como um comitê (…) porque Mark controla em torno de 60% das ações com direito a votos. Mark, sozinho, (…) faz as regras de como distinguir falas incendiárias e violentas das meramente ofensivas, e escolhe fechar um concorrente o adquirindo, bloqueando ou imitando”.

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Quer dizer que é para fechar o Facebook? Não. Nada disso.

Apesar de Zuckerberg fingir que o ameaçam disso, não passa de balela. Nos bastidores, sabe-se que o magnata tem receio de políticos como a democrata Elizabeth Warren, pré-candidata à presidência nos EUA, cujas eleições ocorrem no ano que vem. O que ela (e vários outros, principalmente em meio à comunidade europeia) propõe está longe de ser uma destruição da rede social. Pelo contrário, sugere-se que se multipliquem sites e apps do tipo. Ela (e outros…) quer muitas e muitas redes sociais, proliferando-se. E isso seria magnífico para a sociedade, para o bem estar da política, para a democracia.

Tem uma ironia aí. Se voltarmos a algumas eleições passadas, Zuckerberg – apesar de ser financiador de campanhas de todos os tipos de políticos, de quase qualquer ideologia (para garantir uns votos no lobby do Congresso estadunidense) – se portava como um democrata. Era clara a admiração dele, e de vários outros ícones do Vale do Silício, a, por exemplo, Barack Obama. Assim como tinham ojeriza a Donald Trump (ou assim aparentavam).

Agora, o mandachuva se volta contra os democratas. Por quê? Pois o que Elizabeth Warren propõe é diminuir o poder do Facebook. Isso justamente para garantir a plenitude da democracia dos EUA. Ela quer impor que, por exemplo, o Instagram deixe de ser de propriedade de Zuckerberg e passe a se tornar uma concorrência – ou seja, uma empresa à parte, liderada por outras cabeças.

No mundo ideal para a democracia, seria assim mesmo. Como o Facebook filtra, sim, com seus algoritmos, o que vemos, o que vale, qual informação se espalha, seria bom ter mais opções de peso. Mais Snapchats, Instagrans, TikToks. Sim, TikToks.

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Em sua fala, Zuckerberg mencionou também o novo app chinês, febre entre adolescentes e que tem ameaçado o poderio de seu império. Veja bem: sim, o TikTok é de causar calafrios. Não se sabe bem como são utilizados os dados coletados; há nele muita pornografia direcionada a jovens, incluindo várias de conteúdo criminoso, pedófilo; e ele ainda espalha a cultura de censura e controle da ditadura chinesa. Deveria haver regras mais claras para permitir o TikTok em diversos mercados (inclusive, no Brasil).

Porém, até onde é democrático Zuckerberg se portar como o cavaleiro brilhante que nos defenderá da China? Ao condenar o rival asiático, não se engane: ele não protege a liberdade de expressão; mas, sim, a imposição de sua visão cultural, do modo de vida e de pensar do Vale do Silício. Caso ele realmente defendesse a democracia, seria muito melhor se ele apoiasse, por exemplo, a multiplicação de redes sociais, de variadas nacionalidades, ideologias, regradas tão-somente pela… Justiça. Justiça esta não imposta por ele mesmo, o todo-poderoso Zuck. Mas, sim, por cada país, sendo estes respaldados por órgãos internacionais, como a ONU.

O empreendedor ainda engana seu público ao dizer que o Facebook promove a liberdade de expressão ao dar maior poder a cada indivíduo. Vale lembrar aqui dos livros de um brilhante filósofo de nossos tempo: Byung-chul Han. Certamente Zuckerberg, em sua óbvia genialidade, está a par de livros como “No Enxame”, “Sociedade do Cansaço” e “Sociedade da Transparência”.

Byung-chul Han elabora bem como funciona a estrutura do Facebook (ou do Twitter, ou do YouTube, ou do Instagram, ou do WhatsApp, ou do TikTok). Nesses ambientes, cada usuário parece ter uma voz. Mas só parece.

Na prática, o que ocorre é o que o filósofo define como Shitstorm. Cria-se uma “tempestade de merda” (se preferir, em português contido: “tempestade de indignação”). Parte-se de um post de um indivíduo carismático, seja ele Bolsonaro, Trump, Olavo de Carvalho, ou qual for. A mensagem não representa um grupo, uma comunidade, uma sociedade. Mas o ódio a um alvo específico, usualmente fruto de elementos mantenedores da democracia representativa – ou seja, movimentos como o LGBTQ+, organizações de trabalhadores, instituições ambientalistas etc. Assim a merda, ou “indignação”, é jogada no ventilador do Facebook. Espalha-se entre outros indivíduos, sufocados por tanta bosta, cansados de tanta informação crua tão-somente vomitada nas redes – sem promover qualquer formação de conhecimento (seja de qual ideologia for).

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Vou pular alguns capítulos para resumir o efeito da citada tempestade. A epidemia gera o que Byung-chul Han define como “enxame”. Um novo tipo de massa, na qual cada indivíduo, cada usuário das redes sociais, porta-se como uma abelha aflita para picar a todos, indiscriminadamente. Essa “abelha” até acha que está agindo sob total autocontrole. É justamente a ilusão pretendida; pois, por trás da cortina do marketing promovido por figuras como Zuckerberg, portam-se é como seres indignados atrás de um ódio a tudo e qualquer coisa (seja essa coisa “de direita”, ou “de esquerda”, ou de nenhum dos dois; para as abelhas, tanto faz), movendo-se em torno do que ditam os ditadores do Shitstorm e, ainda, os algoritmos das redes.

O inspirado Zuckerberg lembrou, em sua extremamente bem lapidada e carismática fala em Georgetown, das Guerras Mundiais. Diz que naquela época houve extrema polarização devido ao cerco à liberdade de expressão. É verdade. Todavia, parece se esquecer de três elementos essenciais que surgiram no início do século XX e que, então pouco escrutinados pela sociedade, foram dominados por figuras poderosas, carismáticas, influentes. Aqui falo da TV, do rádio e da propaganda.

Foi ao manipular com êxito tais técnicas de comunicação que ditadores se alçaram. Caso, sim, de Hitler. Um de seus maiores poderes era o controle do cinema, da rádio, da TV, da propaganda. Antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, poucos davam atenção a como essas então novas tecnologias podiam ser utilizadas para fins extremamente danosos. Celebrava-se como os novos meios espalhavam informação, e “liberdade” (em meio a aspas, frente ao contexto aqui apresentado). No entanto, da forma como eram utilizadas por figuras como Hitler, provaram-se poderosas ferramentas de controle social.

Sabe o que hoje representa, em equivalência teórica, a TV, o rádio, a propaganda, o cinema do início do século XX? As mídias sociais. Estas podem ser utilizadas com êxito por figuras autoritárias para glorificar o poder individual e assim impor visões de mundo, estas igualmente individualizadas. Numa tempestade, contaminam o enxame das redes, direcionando-o para onde se quer.

Sabe como se mitigaram os malefícios, em favor dos gloriosos benefícios, das tecnologias do século XX? Com leis, regulações, enfrentamentos a monopólios. Métodos que para desinformados podem parecer de poderio total do Estado. Nada disso. Trata-se de tirar o poder de magnatas e de líderes carismáticos (mas com intenções obscuras; incluindo aí justamente autoridades do Estado), e submetê-los à sociedade, como um todo, sendo essa representada não por um ou outro indivíduo, mas por diversos grupos que, cada um em seu consenso, refletem as vontades de setores sociais-políticos específicos. Sabe qual é o nome dado a esse cenário? Democracia representativa. É exatamente contra esse sistema, o democrático, que atenta o monopólio das redes sociais. E sabe quem prega esse estilo de abordagem para lidar com os excessos autoritários de magnatas e de líderes carismáticos? O liberalismo clássico.

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Caso Zuckerberg realmente quisesse promover a liberdade, como frisou em sua fala cativante, ele poderia tratar de alternativas muito mais saudáveis, pelo ponto de vista social-político-iluminista. Exemplo: um fundo (determinado por lei), bancado pelas próprias empresas do Vale do Silício, que motivasse a criação de rivais que pudessem disputar mercado – e, logo, poderio – com Facebook, Google e as outras das parcas gigantes da indústria digital.

Ele ainda poderia propor, como já insinuou seu ex-amigo e ex-sócio Chris Hughes, que “redes sociais” integrassem o setor de utilidades da sociedade – ao qual pertencem as companhias, por exemplo, de petróleo, de fornecimento de água e de energia, dentre outras. Se assim fosse, Facebook, Twitter ou YouTube se submeteriam a regras muito mais rigorosas, inclusive as relativas a fiscalização e transparência de negócios, em favor do bem-estar social e político.

Para promover a liberdade global, o rosto mais famoso do Facebook ainda poderia, como sugestão, resgatar outra ideia, esta já defendida por ele em outra ocasião: a da renda universal básica. Ou seja, monopólios como o dele contribuiriam, financeiramente, para alimentar cidadãos cujas profissões, carreiras, utilidades, fossem vencidas de vez pela imposição autoritária do sistema do Vale do Silício de se empreender.

O que isso tem a ver com democracia? Tudo. Afinal, dessa forma, se daria um mínimo poder àqueles mais agredidos por esses monopólios, que têm visto seus representantes sendo enfraquecidos, com efeito mortal em grupos que representam uma série de setores da sociedade – que vai de engenheiros que passam a ser dispensáveis frente à ascensão da inteligência artificial, a taxistas, operários etc.

Com todas essas providências, se ressaltariam as grandes glórias das redes sociais (e são muitas!), diminuindo os danos que têm causado à democracia. Todavia, nada disso fez Zuckerberg. Ele preferiu fingir ser um “Founding Father”, o CEO não só dos EUA, como dos interesses globais. Por quê? Pois se fizesse o contrário, iria doer não só em seu bolso, mas em sua aura magnânima de poder.

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Uma pena. Isso porque, se adotasse outra postura, aí sim Zuckerberg poderia começar a se tornar um Benjamin Franklin. Quem sabe um dia a consciência bata e ele mude de postura perante o mundo – e, de preferência, sem querer impor a cultura dos bilionários do Vale do Silício a todo o restante do planeta, de chineses a brasileiros. Isso aconteceu, esse estilo de transformação, com Bill Gates, na última década.

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Ah, e o que isso tem a ver com brasileiros, mesmo? Nós somos o segundo maior público das redes sociais e certamente um dos países que mais têm sentido a agressão à democracia representativa, promovida pelo Shitstorm e pelos enxames virtuais.

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