Localizado nas entranhas do Centro-Oeste brasileiro, o Rio Araguaia é celebrado por sua extraordinária biodiversidade, sinônimo de riqueza brasileira — mas também de preocupação, dadas as sucessivas vezes em que foi agredido pela mão do ser humano. Ao longo de quase 3 000 quilômetros de extensão, há um pouco de tudo ali: Mata Atlântica e muita vegetação típica do Cerrado e da Amazônia. Entre os grandes veios, é o único que mantém o curso natural, por não ter água represada por hidroelétricas.
Batizado com nome tupi, o “rio das araras vermelhas” destaca-se no turismo de pesca devido à variedade de peixes, como o pacu e a corvina. Para a população indígena e ribeirinha, o Araguaia costumava ser fonte de subsistência — sim, costumava, no triste pretérito, porque recentemente, em alguns pontos, os bichos sumiram e, em outros, apareceram mortos. O que acontece com o rio? A soma de novos e antigos problemas dá sinais de esgotamento da forma pela qual a civilização lida com as águas.
Desmatamento em áreas de proteção ambiental, provocado pelo confinamento do gado, aumento de irrigação em regiões de plantio, esgotos clandestinos e agrotóxicos que escorrem das fazendas são algumas das variantes que ameaçam o ambiente. Agora em 2024, o El Niño, fenômeno natural que acontece no intervalo entre cinco e sete anos, responsável pela elevação da temperatura do Oceano Pacífico, fez com que o clima ficasse ainda mais quente e seco na região. No primeiro trimestre, o Araguaia ficou 3 metros abaixo do nível habitual, dificultando a navegação de grandes embarcações. As regiões de praia aumentaram, com areia mais escura e águas com lodo.
O resultado: sumiço dos animais fluviais. “Tem locais do rio sem peixe”, resume o cacique dos carajás, Raul Hawakati, de 68 anos, da aldeia Aruanã. “Nunca imaginei que minha tribo tivesse de comer frango congelado para sobreviver.” A dramática situação foi atalho para uma recente solução de ponta: pesquisadores da Universidade Federal de Goiás, liderados pela professora Fernanda de Paula, capturaram espécies nativas em córregos próximos, no período da piracema — época em que os peixes migram para se reproduzir, entre outubro e dezembro. Em seguida, foram induzidos à fertilização em laboratório. E, enfim, em extraordinário movimento, um cardume de 18 000 peixes juvenis de pacu-manteiga foram soltos em lagos e tanques no fim de fevereiro. E deu-se a multiplicação dos peixes pela ciência. “Ações como essa são vitais para compensar as perdas”, afirma Fernanda.
Os obstáculos, aliás, tendem a despontar com mais frequência do que as soluções, infelizmente. Não demorou, depois do repovoamento, para que profissionais de pesca encontrassem peixes mortos boiando no Rio Vermelho e no Araguaia, por dois dias consecutivos. Rapidamente, os especialistas montaram um comitê de crise. “Percorremos mais de 200 quilômetros e encontramos pontos quase sem oxigênio”, disse a VEJA o pesquisador Ludgero Vieira, professor da Universidade de Brasília. No ano passado, em respeitado artigo, Vieira estimou o tamanho da diminuição da superfície do Araguaia. Entre 1987 e 2019, o rio perdeu quase 40% da área. Para 2030, a projeção é de 50%, caso a situação não mude.
A iniciativa, celebrada internacionalmente, faz parte de um projeto batizado como Araguaia Vivo, patrocinado pela Aliança Tropical de Pesquisa da Água — empresa sem fins lucrativos conhecida pela sigla em inglês TWA. O objetivo é realizar um extenso e cuidadoso inventário de espécies, das mais resistentes às mais frágeis. Os dados serão encaminhados ao Ministério Público, para que medidas sejam tomadas de modo a estancar as irregularidades e, quem sabe, tornar desnecessária a presença de estudiosos que trabalham como detetives à procura de desequilíbrios. É comovente a imagem de pequenos grupos a bordo de canoas, de um lado para outro, silenciosos, coletando água, peixes e outras substâncias para zelar pelo futuro da humanidade.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883