O impacto para o país da retomada do Programa Antártico Brasileiro
Brasil fica em pé de igualdade nas decisões sobre o Polo Sul e na primazia para explorar seus imensos recursos
Com mais de 14 milhões de quilômetros quadrados, a Antártica concentra 70% da água doce e 90% do gelo da Terra. Sob o manto branco que cobre quase todo o Polo Sul há uma extensa área territorial na qual estão conservadas relevantes reservas minerais e biológicas. É a fronteira final, o manancial inexplorado que pode salvar a humanidade de si mesma. Só isso já justifica comemorar a retomada do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que completou quarenta anos com a ocupação da nova Estação Comandante Ferraz. Foi esse projeto que garantiu o ingresso do país no Tratado Antártico, acordo de cooperação internacional para exploração científica da região, com status consultivo e direito a voto e veto entre as 29 nações signatárias.
Localizada ao norte da Antártica, na Ilha do Rei George, a nova casa brasileira na região ocupa 4 500 metros quadrados e pode abrigar com conforto até 64 pessoas, entre funcionários do governo e pesquisadores. As instalações dispõem de dezessete laboratórios de última geração e contam com sinal de wi-fi e sala de ginástica. Mais rudimentar, a primeira sede, aberta em 1984, ficou ativa até 2012, quando um incêndio a destruiu. Ao custo de cerca de 100 milhões de reais, os novos edifícios foram inaugurados em janeiro de 2020, com a promessa da retomada das atividades. A pandemia de Covid-19, porém, pôs os planos em compasso de espera. Isso durou até 2022, quando a 40ª Operação Antártica (Operantar XL) deu continuidade ao engajamento do país no continente.
Pela proximidade, o Brasil é diretamente afetado por tudo que acontece no Polo Sul, tanto do ponto de vista ambiental quanto de exploração de recursos. Ao conquistar espaço e voz ativa entre nações como Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido, França e Alemanha, o país garante acesso a uma biodiversidade preciosa. É uma fonte de produtos biotecnológicos como antibióticos mais resistentes e herbicidas naturais, além de anticongelantes potentes e combustíveis menos poluentes. “Estamos muito perto disso tudo para ignorar a existência do continente”, disse a VEJA o coordenador científico da estação, Paulo Câmara, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB). “Não dá para fazer de conta que não tem nada a ver com a gente.”
Tem, e muito. O recém-reconhecido Oceano Austral, que banha a Antártica, tem contato com o Oceano Atlântico, que margeia o litoral brasileiro. Possíveis alterações climáticas podem afetar a região litorânea e até o interior, assim como a biodiversidade marinha da nossa faixa costeira e das águas sob jurisdição nacional — a chamada “Amazônia Azul” e todo o seu potencial econômico. O desprendimento e o derretimento das enormes plataformas de gelo antárticas, que já vêm ocorrendo nos últimos anos devido ao aquecimento global, podem mudar a dinâmica das águas próximas e ao redor do mundo.
Monitorar os impactos das mudanças climáticas, entender melhor a dinâmica do clima antártico e a complexidade de sua biodiversidade ajuda a prevenir possíveis desastres ambientais. Além disso, abre caminho para outras possibilidades. “Pode até se transformar em espaço de colonização, caso desastres naturais e não naturais ocorram nos demais continentes do planeta”, disse o professor Luiz Henrique Rosa, pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
A conscientização, é natural, passa pelo conhecimento. A Antártica ainda é pouco conhecida pelos brasileiros e pelo restante do mundo, e talvez por isso exerça tanto fascínio. Investir no projeto científico, iniciativa que tem se mostrado bem-sucedida apesar das pedras no caminho, pode ser uma forma de divulgar os trabalhos e atrair interesse para o continente. Para se manter dentro do Tratado Antártico com o status que tem hoje, o Brasil precisa continuar realizando pesquisas de qualidade na região, até pelo menos a primeira revisão do acordo, prevista para 2048. É a ciência a serviço de um futuro diverso e sustentável, apartado do negacionismo espraiado nos últimos anos.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806