Nova muralha da China: a polêmica construção da maior hidrelétrica do mundo no Tibete
Controlado por Pequim, ela vai na contramão dos princípios da sustentabilidade da energia renovável

Uma nova, imponente e — sobretudo — controversa “Muralha da China” está para ser erguida. A hidrelétrica de Motuo será construída em um trecho de 50 quilômetros do Rio Yarlung Tsangpo, no Tibete, região de falsa autonomia política, controlada por Pequim. O projeto promete superar, em tamanho, a colossal usina de Três Gargantas, também chinesa.
A justificativa oficial é adequada e sensata. A China tem 56% de sua produção energética baseada em fontes renováveis, mas quer crescer o naco limpo — a título de comparação, o Brasil tem 80%, especialmente a partir de iniciativas hídricas. Tudo muito bonito, tudo muito correto, não fosse a avalanche de problemas que começam a despontar e a preocupar.
A barragem artificial de Motuo aproveitará o vasto espaço de um cânion com queda d’água de 2 000 metros de altura na fronteira entre o Tibete e a Índia (veja no quadro). Túneis escavados desviarão o curso natural do leito para a usina. Entretanto, um estudo ambiental da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, deu o alerta: haverá desmatamento, perda de biodiversidade aquática e terrestre, emissão de gases de efeito estufa e deslocamento de populações. Ou seja: a ideia original, meritória, provocaria estragos, com direito a quizumbas diplomáticas.

O Rio Yarlung Tsangpo, depois de passar pelo Tibete, torna-se o Brahmaputra, na Índia, e o Jamuna, em Bangladesh, para desaguar no Golfo de Bengala. A retenção de sedimentos essenciais para a agricultura na barragem pode comprometer a fertilidade do solo ao longo do curso. Em resposta ao projeto chinês, autoridades indianas propuseram construir seu próprio represamento nas cercanias, em tentativa de mitigar os efeitos da edificação da China. No entanto, a medida pode simplesmente replicar os mesmos problemas ambientais e agravar a situação em Bangladesh, país que já enfrenta enchentes e erosões severas.
Há, ainda, não bastassem os nós ambientais, riscos reais para a própria construção, atrelados a descontrole geológico. O Rio Yarlung Tsangpo nasce na Cordilheira do Himalaia, região formada pelo encontro das placas tectônicas Indiana e Euroasiática. Em janeiro, um terremoto na cidade de Shigatse provocou rachaduras em cinco hidrelétricas no Tibete, evidenciando a vulnerabilidade daquelas estruturas em zonas sísmicas. As autoridades fazem ouvidos moucos aos alertas, bem ao modo do autoritarismo de partido único. Apesar das promessas do governo de considerar as consequências negativas para os países vizinhos, poucas informações concretas sobre medidas de controle e compensação foram divulgadas. Um artigo publicado pela Associação Internacional da Água sobre a disputa do Rio Yarlung Tsangpo-Brahmaputra indica que, com o avanço das mudanças climáticas, a chamada “guerra d’água” naquela porção oriental do planeta pode se intensificar caso não haja colaboração efetiva entre os países envolvidos, a meio caminho de conflitos regionais.
Convém, na lida com a engenharia que mexe com a natureza, beber de exemplos, como os do Brasil. Dados recentes em torno da barragem de Tucuruí, na Amazônia brasileira, mostram que a captura de peixes foi drasticamente reduzida, em evidente ameaça para a subsistência de populações ribeirinhas. “Mais de 100 000 pessoas que vivem rio abaixo foram afetadas pela perda de recursos pesqueiros, agricultura de várzea e outros recursos naturais”, anota o relatório, elaborado com cuidado por cientistas americanos. Estima-se que cerca de 432 milhões de pessoas que vivem à beira de rios e em seus baixios já foram impactadas por barragens, em todo o mundo, embora os efeitos sobre essas comunidades ainda precisem de estudos mais detalhados. Na contramão dessa tendência, países europeus têm aderido ao movimento Dam Removal Europe (Remoção de Represas na Europa), que visa restabelecer o fluxo natural dos rios para beneficiar pessoas e ecossistemas. A China vai na direção contrária, com a polêmica obra no Tibete. O apetite do dragão asiático por energia ameaça passar por cima dos cuidados necessários para mitigar o impacto da gigantesca hidrelétrica. Será preciso muita força para barrar essa intenção a qualquer custo.
Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938