Fantasma do derretimento de neve ronda as pistas de esqui da Europa
O movimento inédito é resultado do aquecimento global
Um fantasma ronda o inverno na Europa — o fantasma do derretimento da neve em algumas das mais badaladas pistas de esqui. Entra ano, sai ano, como quem vai à praia no verão brasileiro, cerca de 80 milhões de turistas vestem casacos recheados de pena de ganso, calçam luvas e sobem os Alpes para subir e descer as montanhas. A má notícia, agora em 2024: as paisagens brancas parecem engolidas pelo marrom acinzentado das rochas e pelas árvores, majoritariamente carvalhos e faias (além de cáctus, elementos estranhíssimos, que brotam aqui e ali). É fenômeno que alcança todos os países com porções alpinas, da França até a Eslovênia, passando por Suíça, Itália, Alemanha e Áustria — e chega até mesmo aos Cárpatos, especialmente na Polônia, República Checa e Eslováquia, em secura inédita, até onde a vista alcança.
Houve espanto, em setembro do ano passado, quando a prefeitura de La Sambuy, próxima ao mítico Mont Blanc, do lado francês, anunciou o fim das atividades esportivas e de lazer durante os meses de frio. Como em 2023 houvera apenas cinco semanas de horizontes alvos e temperaturas baixas, e 2024 anunciava cenário semelhante, decidiu-se pelo fechamento do pequeno, agradável e sempre lotado resort, que já não poderia se manter economicamente sem os visitantes, que sumiram. Na região central da Itália, nas cercanias de Rieti, não muito distante de Roma, os termômetros permaneceram acima dos 10 graus durante dezembro e janeiro. No Jura francês, a caminho de Genebra, os mantenedores da estação de Métabief olham para o futuro com pessimismo e começam a desenhar um projeto de transformação radical, e o que hoje é estação de esqui deve ser transformado, até 2035, em um conjunto de hotéis atrelados ao trekking, a passeios pela montanha — e não mais, necessariamente, ao esporte e a brincadeiras em cima das camadas de flocos. Planos parecidos são traçados na Bavária alemã e em Zakopane, na Polônia.
O estrago, que mexe com os negócios — cujas perdas ainda não foram estimadas —, mas também com um estilo de vida, é resultado esperado e terrível do aquecimento global. O ano passado foi o mais quente da história jamais registrado, marcado por um recorde impressionante: todos os dias do ano ficaram 1 grau acima, em média, do nível pré-industrial. O Acordo de Paris, com 195 signatários, prevê a redução das emissões de gases de modo a garantir que o planeta não aqueça acima de 2 graus, preferencialmente a no máximo 1,5 grau. No ano passado, contudo, em metade dos dias os termômetros ultrapassaram essa barreira. Não é o fim do mundo, não, mas serve de alerta para o que pode vir pela frente. Um estudo publicado na revista científica Nature Climate Change estima que, caso o planeta atinja a marca de 2 graus para além do esperado, 53% das 2 234 estações de esqui europeias estariam arriscadas a desmilinguir. O impacto chegaria a 98% do total caso a marca chegasse a 4 graus.
Há solução? Uma delas é a fabricação de neve artificial, recurso adotado por 60% das estações. O problema é que a “magia” demanda água em abundância e energia elétrica. “A iniciativa aumenta a pegada de carbono e pode vir a alimentar conflitos por recursos naturais”, diz Laurent Vanat, especialista no tema. E dá-se um curioso beco sem saída: boa parte da água consumida na Europa vem do degelo dos Alpes. Sem a formação da neve, há risco de desabastecimento. É impossível afirmar, com certeza absoluta, que os invernos nunca mais serão os mesmos — mas não há como fugir do receio, do frio na espinha.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882