Califórnia registra radical e inédita sucessão de eventos climáticos
A temporada de inundações já somou prejuízo de 31 bilhões de dólares, segundo a agência de previsão de tempo AccuWeather
Conhecida por suas espetaculares paisagens, uma sucessão de cartões-postais que põe lado a lado mar, lagos, picos nevados e a vastidão do deserto, a Califórnia sempre viveu às voltas com um fantasma chamado Big One — um terremoto devastador que varreria do mapa o mais populoso estado americano. O medo está fincado na existência da gigantesca falha de San Andreas, o encontro de duas placas tectônicas que se estendem por 1 300 quilômetros e fazem daquelas bandas o local de maior instabilidade sísmica do planeta. Pois em meio a uma sequência sem precedentes de eventos climáticos, fruto do onipresente aquecimento global, a rachadura sobre a qual vivem os quase 40 milhões de californianos virou por ora preocupação secundária. Nunca antes se viu ocorrer com tamanha magnitude e, em tão curto espaço de tempo, secas inclementes seguidas de incêndios, que emendaram com um inverno de furiosas nevascas e as atuais tempestades, como não se registravam ali havia mais de um século. “É um desdobramento impressionante das acentuadas mudanças climáticas”, diz o geocientista Stephen LaDochy, da Universidade Estadual da Califórnia.
O sacolejo nos termômetros produziu nesses últimos tempos um efeito inesperado: as chuvas torrenciais fizeram ressurgir o Tulare Lake, a uma hora de carro de São Francisco, ao redor do qual se situa um pontilhado de cidades. Como consequência das transformações do clima, aliadas à ação humana, ele tinha desaparecido. A volta do lago poderia ser boa notícia, não fosse o fato de ocorrer num contexto em que essa porção do estado se vê inundada pelo excesso de água que tombou — e segue caindo. A cena de pessoas escapando de suas casas a bordo de caiaques e vizinhanças inteiras da região submersas certamente ingressará no rol dos históricos desastres climáticos californianos. “Tudo se complica ainda mais na Califórnia por ser um lugar de elevada densidade populacional”, observa o geocientista José Marengo.
Não é de hoje que esse naco da Costa Oeste dos Estados Unidos vem sendo castigado pelos extremos climáticos, situação que tem raízes na mão humana. “Com o rápido avanço da agricultura, a água fartamente desviada dos lagos contribui de forma decisiva para que eles sequem, fenômeno acompanhado da progressiva urbanização, que leva a uma queda da umidade e altera o ecossistema”, afirma Marengo. Foi nesse cenário que as tempestades fora do comum causaram as inéditas inundações, uma vez que o solo esturricado não se mostrou capaz de absorver com a mesma presteza a quantidade colossal de chuva que desabou ali. Uma particularidade local deu contornos mais dramáticos ao quadro — o estado, que desde sempre registra a presença dos rios atmosféricos (ou voadores), poucas vezes os viu com tanta intensidade. E assim, de evento em evento, os temporais se incorporaram à rotina.
A temporada de inundações já somou prejuízo de 31 bilhões de dólares, segundo a agência de previsão de tempo AccuWeather. O setor agrícola é o que mais pena, com repercussão planeta afora. “As inundações não representam apenas um prejuízo para o estado, mas para as cadeias globais de abastecimento de alimentos”, afirma Jeffrey Richey, especialista em hidrologia da Universidade de Washington. O Vale de San Joaquin, onde a tormenta se pronunciou de maneira mais violenta, envia algodão, leite e outros itens para vários países.
A potente economia da Califórnia alçaria o estado, caso fosse um país, à quinta posição entre os mais ricos do mundo, se encaminhando para chegar ao PIB da Alemanha. Nestes dias, porém, a vida anda mais dura, com as big techs sediadas no próspero Silicon Valley, como Google e Facebook, promovendo demissões em massa, o custo de vida exageradamente alto e um déficit de 22,5 bilhões de dólares no caixa. Contornar o mau momento, segundo já reconheceu o governador Gavin Newsom, passa por um futuro próximo em que o desequilíbrio ambiental — que vem produzindo ao mesmo tempo recordes de calor e um frio polar — seja firmemente combatido. Em dezembro, Newsom assinou medidas para reduzir radicalmente a poluição e alcançar até 2045 energia 100% sustentável, com zero de carbono. As imagens de terra arrasada em tão bela paisagem não deixam dúvida de que os esforços devem começar quanto antes.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840