Bomba ambiental: como a guerra na Ucrânia massacra a natureza
Além de baixas humanas irreparáveis, disputa afeta a biodiversidade local e mostra como conflitos armados podem ser maléficos para o meio ambiente
A invasão da Ucrânia pela Rússia completa no próximo dia 24 de junho exatos quatro meses. Desde então, a guerra no coração da Europa deixou um saldo de mais de 5 milhões de refugiados ucranianos e provocou número incerto de baixas entre civis e militares — as estimativas oscilam entre 50 000 e 100 000 vidas perdidas. A tragédia humanitária, tão dolorosa quanto indefensável, não é o único legado desastroso do conflito. Há outro efeito igualmente pernicioso dos ataques perpetrados pelas tropas do presidente da Rússia, Vladimir Putin: a devastação ambiental. As investidas feitas por mísseis que liberam no ar partículas de combustível e metais, as bombas de fragmentação que espalham destruição em áreas enormes, os canhões que cospem ogivas e muitos outros utensílios militares não ceifam apenas vidas humanas, mas são particularmente agressivos com o meio ambiente. Rios poluídos, espécies nativas da fauna e da flora exterminadas, atmosfera tóxica e irrespirável e florestas destroçadas pelo fogo são alguns dos danos trazidos pela guerra que se estende.
Os relatos feitos por associações de preservação são tenebrosos. “Durante os ataques maciços, toneladas de produtos químicos tóxicos, incluindo urânio, entram no solo contaminando tudo pela frente”, disse à rede americana CNN Olena Kravchenko, diretora executiva da Environment People Law, um think tank ambiental de Lviv, no oeste da Ucrânia. As explosões de dutos de gás e óleo lançaram no ar material cancerígeno e os ataques a estações de tratamento de esgoto fizeram com que coliformes fecais fossem despejados diretamente nos rios. Riscos epidemiológicos, portanto, são eminentes. Recentemente, imagens de satélite mostraram que grandes áreas do leste e do sul do país foram tomadas por incêndios florestais provocados pelas explosões. O quadro se agrava porque faltam bombeiros para conter as chamas — quase todos foram convocados para o front. Na agricultura, os impactos deverão ser brutais. O solo fértil ucraniano, um fartíssimo celeiro da Europa, foi contaminado por metais pesados e substâncias que vazaram de mísseis e equipamentos militares.
A Ucrânia possui algumas características que a tornam mais suscetível aos efeitos nefastos da guerra. O país é o lar de 70 000 espécies raras e endêmicas de flora e fauna e abriga 35% da biodiversidade da Europa. Estima-se que 16% de sua área terrestre é coberta por florestas, e elas estão demasiadamente expostas aos movimentos militares: uma nova projeção mostra que 44% dos parques naturais ficam encravados em zonas de conflito — entre eles, a Reserva da Biosfera do Mar Negro, um paraíso para 120 000 aves que foi dominado pelas tropas russas. Há alguns dias, imagens de golfinhos mortos na costa do Mar Negro correram o mundo e alertaram para os perigos que rondam a vida selvagem local. Os preservacionistas relatam que os animais foram vítimas dos sonares dos navios, que os desorientam e os impedem de se alimentar. “Espécies vulneráveis e raras costumam ser as mais afetadas em tempos de guerra”, afirma Lászlo Nagy, professor de biologia animal da Unicamp.
A história ensina que conflitos armados são inimigos ferozes do meio ambiente. Na Guerra do Vietnã, que se estendeu ao longo dos anos 1960, militares americanos lançaram substâncias químicas em grandes áreas de mata e o resultado foi a destruição de vastas porções florestais que demoraram décadas para se recuperar. Na Guerra do Golfo, travada entre Estados Unidos e Iraque no início dos anos 1990, tropas iraquianas incendiaram centenas de poços de petróleo e derramaram propositalmente milhões de barris no Golfo Pérsico. Como consequência, colheitas foram destruídas e relatos de doenças respiratórias cresceram significativamente. Em 2014, as sangrentas batalhas que culminaram na anexação da Crimeia pela Rússia — sim, a Rússia de novo — contaminaram áreas subterrâneas com elementos químicos e até hoje certas regiões estão impedidas de fazer uso da água local. As guerras destroem tudo o que encontram pela frente. Lamentavelmente, até mesmo os indefesos patrimônios ambientais do planeta.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794