A força que vem do campo: as oportunidades do etanol para o Brasil
A necessidade de buscar soluções para amenizar as mudanças climáticas o coloca entre os principais biocombustíveis
O setor de transportes responde por quase 23% das emissões globais de dióxido de carbono —só os automóveis representam dois quintos disso, de acordo com um estudo do Fórum Internacional de Transportes (ITF, na sigla em inglês), que faz parte da OCDE, o clube dos países ricos. O mundo debate iniciativas que possam promover a descarbonização, especialmente desses setores que mais contribuem para o aquecimento global. Na COP28, a Conferência do Clima que acontece até 12 de dezembro em Dubai, a discussão gira em torno de como acelerar esse processo em um planeta que tem sofrido cada vez mais com eventos extremos como inundações e secas.
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Já é consenso que, para conter a elevação da temperatura global, os combustíveis fósseis deverão ser substituídos por fontes renováveis de energia. A adoção dessas alternativas em carros, caminhões e aviões é urgente, considerando que a demanda pelo transporte de passageiros continuará crescendo — alta prevista de 65% a 79% até 2050 em comparação com 2019, segundo o ITF, assim como a demanda por transporte de carga, que deverá crescer de 50% a 59% no período.
É nesse cenário que os biocombustíveis têm ganhado espaço. O etanol atende a necessidades prementes de encontrar uma alternativa limpa que não demande altos investimentos em infraestrutura para ser viável e que, ao mesmo tempo, seja acessível aos consumidores. “Quando olhamos a demanda global por energia para transporte, percebemos que alguns países estão optando pela eletrificação dos veículos, o que é perfeitamente possível, mas exige altos investimentos na criação de uma rede de abastecimento”, diz Francis Queen, vice-presidente das áreas de etanol, açúcar e bioenergia da empresa de energia Raízen. “Há também a questão do preço alto desses veículos em países como o Brasil, o que dificulta sua popularização. Temos hoje uma solução já pronta, que é o carro híbrido que usa etanol, com emissão de menos dióxido de carbono por quilômetro rodado.”
O Brasil está em posição privilegiada para impulsionar essa alternativa em todo o mundo. A produção de etanol proveniente da cana-de-açúcar e do milho, também chamado de etanol de primeira geração (ou E1G, pelo jargão do setor), deve crescer respectivamente 5% e 37% na safra 2023/24 em comparação com a última safra. Ao somar essas duas produções, a estimativa é de gerar quase 34 bilhões de litros, um crescimento de 9%, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab.
Somente a Raízen, maior processadora de cana do mundo, responde por cerca de 3 bilhões de litros do etanol de primeira geração. A diferença entre o etanol de primeira geração e o de segunda (E2G) está nos insumos utilizados para a produção. Enquanto o de primeira usa plantas como cana, milho e trigo, o de segunda geração é obtido a partir do bagaço restante da produção do açúcar e do etanol comum. É o chamado etanol celulósico, que utiliza a celulose como biomassa para produção do biocombustível. “A tecnologia já permite coletar as palhas e folhas que sobram das plantações de cana para gerar esse produto final a partir de resíduos. Em termos de sustentabilidade, é o mais adequado porque, além de resultar em um etanol que emite ainda menos gases de efeito estufa, não compete com alimentos por áreas agrícolas”, afirma Queen. Na comparação com o etanol comum ou de primeira geração, o de segunda apresenta índice 80% menor de emissão de gases de efeito estufa. Já em relação à gasolina, esse índice sobe para 93%.
Em outubro deste ano, a Raízen iniciou a operação comissionada da maior fábrica de E2G do mundo, instalada no Parque de Bioenergia Bonfim, na cidade paulista de Guariba. Investiu 1,2 bilhão de reais nessa usina, que tem capacidade de produzir 82 milhões de litros de etanol por ano. A empresa tem oito novas unidades industriais já anunciadas de etanol de segunda geração que serão entregues até 2027, quase todas no interior de São Paulo.
No Rio Grande do Sul, as baixas temperaturas dificultam a produção de cana-de-açúcar, o que afeta, por consequência, a de etanol. Esse é um dos motivos pelos quais o estado produz menos de 1% da sua demanda pelo biocombustível. A empresa Be8 (ex-BSBios), que atua na produção de biodiesel no Brasil, na Suíça e no Paraguai, quer mudar esse cenário. Está investindo 556 milhões de reais na construção, em Passo Fundo, de uma usina de etanol a partir do processamento de cereais como milho, trigo, triticale, arroz e sorgo. O Rio Grande do Sul se destaca na produção de trigo, competindo com o Paraná pela liderança nacional — juntos, os dois estados respondem por mais de 80% da produção brasileira desse grão.
“Estamos olhando para a experiência de países como Polônia, Áustria, Canadá e Inglaterra, que produzem etanol baseado em cereais”, afirma Erasmo Carlos Battistella, fundador e presidente da Be8. A usina em Passo Fundo, em fase final de obtenção de licença de implantação, terá a maior capacidade de produção de biocombustível no Rio Grande do Sul. “Vamos produzir por ano 220 milhões de litros de etanol, além de fornecer 155 000 toneladas de farelo para a cadeia de proteína animal”, diz Battistella.
Estímulo à expansão
No início de setembro, o governo federal enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei batizado de Combustível do Futuro, cuja expectativa é viabilizar investimentos de 250 bilhões de reais para a descarbonização do setor de transportes. Entre as principais medidas da proposta estão o aumento do percentual de etanol anidro na gasolina para até 30%, a criação do programa nacional de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) e o estabelecimento de um marco regulatório sobre captura e estocagem geológica de dióxido de carbono. As iniciativas estão em linha com os compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil de aumentar a participação da bioenergia na matriz energética, expandir o consumo de biocombustíveis, ampliar a oferta de etanol, com destaque para E2G, e elevar o índice de mistura do biodiesel com o óleo diesel comum.
Da mesma forma que o etanol é o biocombustível dos veículos leves e médios, o biodiesel corresponde ao dos pesados, como os caminhões e ônibus. Atualmente, no Brasil, é obrigatório misturar 12% de biodiesel com o diesel. Em 2024, o índice passará a ser de 13%. “Esperamos que haja uma antecipação no avanço dessa mistura para 14% ou 15% já em 2024. O aumento do índice de mistura do biodiesel pode ser feito com baixo custo de transição para o mercado, sem demandar antecipação de investimentos e renovação das frotas”, diz Julio Cesar Minelli, diretor-superintendente da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio). O biodiesel, produzido a partir de fontes renováveis vegetais e animais, como óleo de palma, óleo de soja e gordura bovina, é um produto de origem verde — diferentemente do diesel, um derivado de petróleo e, portanto, um combustível fóssil.
Em 2024, a previsão é de um aumento significativo no consumo de biodiesel no Brasil, com perspectivas igualmente positivas para os anos seguintes. “A estimativa é que no próximo ano a demanda brasileira de biodiesel chegue a 8,5 bilhões de litros, um novo recorde”, diz Leonardo Rossetti, analista de inteligência de mercado da consultoria StoneX. O óleo de soja, hoje a principal matéria-prima para a produção de biodiesel, deverá manter sua relevância no curto prazo. Isso se deve à capacidade do setor de expandir o fornecimento desse insumo à indústria de biodiesel, levando em conta a expressiva produção de soja prevista para a próxima safra, de 169 milhões de toneladas.
Também obtido a partir de óleos de origem orgânica, o SAF é apontado como uma solução para descarbonizar o setor de aviação, substituindo o querosene e podendo reduzir em até 80% as emissões de gases de efeito estufa, segundo a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata). Em 2022, os países membros da Organização da Aviação Civil Internacional se comprometeram a atingir a neutralidade das emissões líquidas de carbono até 2050. Estima-se que o setor de aviação seja responsável pela emissão de cerca de 3,5% do dióxido de carbono lançado na atmosfera.
Embora o SAF possa ser produzido com diferentes matérias-primas, incluindo o óleo de cozinha, sua viabilidade comercial, considerando a enorme demanda do mercado, só poderá ser alcançada com um insumo produzido em larga escala, como o etanol. Uma das empresas de olho nesse mercado é a Be8, que tem investimentos em fase avançada no Paraguai para construir uma fábrica que atenda não somente o mercado brasileiro, mas também outros países da América do Sul, além de Europa, Estados Unidos e Oriente Médio. “O Brasil, sozinho, tem 50% do mercado sul-americano de aviação. A substituição do querosene pelo SAF servirá de modelo para outros países, motivo pelo qual regulações nesse sentido são importantes”, diz Battistella, da Be8. Já a Raízen recebeu em agosto uma certificação internacional que comprova que o etanol produzido em seu parque de bioenergia em Piracicaba, no interior paulista, cumpre os requisitos para a produção de SAF. “A aviação terá de adotar os biocombustíveis. O SAF, que não exige adequação das aeronaves, pode ser utilizado desde já”, afirma Queen, da Raízen. É um novo negócio que tem tudo para decolar.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição especial nº 2871