Batalhas da carne e da alma
'Dunkirk' fez o espectador ver a história de dentro, enquanto 'Mindhunter' mergulhou no horror da alma dos assassinos
1 – Dunkirk
(Inglaterra/Holanda/França/Estados Unidos, 2017)
A batalha de Dunquerque, em meados de 1940, foi a mais formidável derrota dos aliados na II Guerra Mundial. Encurraladas numa praia no norte da França pelos alemães, forças inglesas, francesas e belgas sofreram grandes baixas. Mas o fracasso se reverteria em triunfo: graças a um esforço heroico, 300 000 combatentes foram resgatados, de barco. Ao recriar o episódio, o diretor inglês Christopher Nolan oferece uma perturbadora imersão no caos e horror da guerra. Dunkirk amplia com virtuosismo a noção do que faz o cinema ser cinema: por mais que a televisão hoje tenha crescido em qualidade, nada substitui a experiência sensorial de ver um épico de guerra na tela gigante, com a profundidade do Imax.
2 – BINGO — o rei das manhãs
(Brasil, 2017)
Exuberante e hilariante, amargo e devastador, o longa-metragem de estreia de Daniel Rezende (que concorreu ao Oscar de montagem por Cidade de Deus) é o grande filme brasileiro da década até aqui pela maneira como ao mesmo tempo recria e satura a trajetória do ator que interpretou o palhaço Bozo no SBT de 1984 a 1986. Célebre sem ser sequer conhecido, o protagonista Augusto — Vladimir Brichta, numa atuação excepcional — resume as vicissitudes da fama no universo da cultura pop.
3 – BLADE RUNNER 2049
(Estados Unidos, 2017)
A bilheteria mundial decepcionou: 257 milhões de dólares é pouco para uma produção de 150 milhões. O ritmo meditativo e o tom filosófico do filme dirigido por Denis Villeneuve, com suas especulações melancólicas sobre a finitude do ser humano (seja ele “natural” ou, como K, o policial vivido por Ryan Gosling, artificialmente projetado), não são próprios de blockbusters. Os espectadores que faltaram a essa digna sequência do filme original de 1982 perderam um espetáculo visual inigualável — a cena de sexo envolvendo um personagem holográfico é hipnótica. E é um prazer ver Harrison Ford voltar ao papel do durão e desencantado Rick Deckard.
1 – Mindhunter
(Estados Unidos, 2017. Disponível na Netflix)
Tipo almofadinha e nerd, com abertura para trocas de experiências (inclusive sexuais) com a intelectualidade progressista, o agente Holden Ford (Jonathan Groff) é um corpo estranho no FBI. Enquanto seus pares seguem velhos métodos contra o crime, ele tem inquietações avançadas demais para os anos 70: quer entender por que há uma epidemia de assassinos que agem sem motivação aparente — e, sobretudo, compreender a mente desses criminosos. Mindhunter, do americano David Fincher, impõe-se como a melhor série de 2017 pela dupla sacada de captar o momento em que o termo “assassino em série” entrou em voga e se desenrolar como uma crônica da gênese da moderna ciência criminal. Os diálogos entre Ford e psicopatas reais como Ed Kemper (o monumental Cameron Britton) são o tempero que dá liga a essa iguaria rara da TV.
2 – The young Pope
(Estados Unidos/França/Itália/Espanha, 2016. Exibido no Brasil pelo canal Fox Premium)
Lenny Belardo é um azarão na disputa pelo Trono de São Pedro. No entanto, o conclave sagra o cardeal americano como o novo papa. E que papa ele será! Pio XIII — é esse o nome que ele adota como pontífice — promove uma revolução conservadora no Vaticano, reinstaurando uma férrea ortodoxia em questões de liturgia, fé e comportamento. Criada pelo italiano Paolo Sorrentino, de A Grande Beleza, The Young Pope tem um apuro plástico irretocável e um elenco afiadíssimo: o italiano Silvio Orlando confere humanidade ao confuso Voiello, o cardeal que antes de Pio XIII mais bem dominava a política vaticana; a americana Diane Keaton compõe uma freira ao mesmo tempo assertiva e compassiva; e o inglês Jude Law torna carnalmente palpáveis os anseios espirituais do jovem papa.
3 – Godless
(Estados Unidos, 2017. Disponível na Netflix)
Com Godless, a Netflix confirma que 2017 foi seu annus mirabilis: fora um ou outro espasmo da concorrência, a plataforma de streaming dominou a seara das séries. A realização de Scott Frank (roteirista de Logan) mostra com que armas se venceu essa guerra: ousadia e produção sem miséria. Godless renova um gênero superexplorado, o faroeste, ao falar do clássico embate entre um homem forte, o criminoso Frank Griffin (Jeff Daniels), e seu pupilo desgarrado, Roy Goode (Jack O’Connell). Mas não se esgota aí: há uma gama riquíssima de personagens e dramas do Oeste americano dos idos de 1880, de mulheres fortes a um romance inter-racial. A fotografia e as sequências magistralmente coreografadas (as cenas com cavalos estão entre as melhores já feitas) aproximam a TV do cinema.
Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562