#25 A EVOLUÇÃO: Assim caminhamos
A ciência revisita e amplia as teorias evolucionistas, incorporando a tese de que o meio e suas circunstâncias têm um papel nessa história
Pioneiro nos estudos sobre a evolução, o naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) acreditava que as espécies se modificavam como consequência das condições do meio ambiente. Um exemplo clássico de suas ideias é o das girafas, que teriam desenvolvido pescoço longo graças ao esforço pela sobrevivência para alcançar plantas mais altas, pois as rasteiras rareavam. As conquistas de uma geração passariam à seguinte, em um processo gradativo que teria culminado na girafa de pescoço comprido que conhecemos. “É puro lixo”, definiu o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), cuja teoria da seleção natural prevaleceu sobre a do colega francês, que estava errada. Para Darwin, o meio ambiente não induz mudanças; elas são obra do acaso. Os afortunados que nascem mais fortes e aptos vencem e suas características se perpetuam. Tudo certo, mas a história não termina aí. Ela também evolui movida pela inesgotável curiosidade científica de explicar como e para onde caminha a humanidade.
De uns anos para cá, uma ala de cientistas vem revisitando com nova ótica e mais recursos um ponto específico da teoria lamarckiana, que em seu conjunto caiu em desgraça: aquele em que o meio ao qual as espécies estão expostas pode impactar o modo como elas se desenvolvem. Eles ainda bebem muito mais da fonte darwiniana, sólida e irrefutável, mas a superam ao afirmar que desafios postos pelo ambiente afetam em certos casos (e não em todos, como pregava o francês) a maneira como os genes se manifestam (gene, aliás, um completo desconhecido tanto para Lamarck quanto para Darwin). Nada muda nas informações genéticas contidas no DNA, concordam. A novidade está em entender que o meio e suas circunstâncias podem fazer com que o organismo sofra alterações bioquímicas — e estas, sim, têm o poder de modificar, se não os genes, a forma como eles se expressam.
A descoberta mais extraordinária nesse campo, chamado de epigenética, é que tais mudanças também influenciam os herdeiros — ou, em outras palavras, impactam a evolução (leia a reportagem). Pesquisas observaram, por exemplo, que no caso de pessoas submetidas a brutalidades, como abuso infantil e guerras, certas informações do DNA deixam de ser “lidas” pelas células, o que eleva as probabilidades de doenças psiquiátricas — para elas e os descendentes. A britânica Nessa Carey, da Universidade de Edimburgo, relata em livro um episódio que suscitou vários estudos. Em 1944, tropas nazistas impediram a entrada de alimentos na Holanda, submetendo a população a meses de fome. Depois o país prosperou, mas a geração seguinte, que nunca viveu privação igual, tinha número incomum de indivíduos traumatizados e obesos (resultado da escassez, uma vez que o organismo aprende a armazenar). Em alguma medida, os efeitos daqueles dias dramáticos passaram de pai para filho — herança em nível celular, diz Nessa.
Essas ideias estão embaladas no que é hoje chamado de Síntese Evolutiva Expandida (na sigla em inglês, EES), que absorve e enriquece a Teoria Moderna da Evolução. Cada passo da ciência para engrandecer o conhecimento, porém, deve ser visto com a cautela necessária para dar ao avanço seu real peso e medida. “Os achados da epigenética são fascinantes e mostram que o ambiente pode mesmo interferir em traços herdáveis, mas seu alcance para a evolução é relativamente limitado”, pondera Diogo Meyer, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. “O que se sabe até agora é que mudanças estimuladas pelo ambiente se estendem a uma ou duas gerações”, diz o biólogo evolutivo Rodrigo Nunes da Fonseca, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Amparados no que já se sabe sobre a epigenética, cientistas estão abrindo um novo campo de pesquisas para a cura de doenças hereditárias. O Roadmap Epigenomics Project já começou a investigar o mapa epigenético de seres humanos, em parceria de universidades americanas com colaboradores do mundo todo. A previsão é que os estudos ajudem a descortinar, em futuro não muito distante, tratamentos e medicamentos para alguns tipos de câncer, doenças autoimunes e mentais. A evolução não para.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601