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Choque de realidade

A estratégia da nova geração para assegurar a popularidade da monarquia britânica é parecer que leva uma vida “normal”. Mas é só para inglês ver

Por Isabela Izidro Atualizado em 30 jul 2020, 20h36 - Publicado em 29 set 2017, 06h00

Discretamente, de jeans (o dela rasgado no joelho esquerdo), o casal chegou de mãos dadas ao estádio em Toronto, no Canadá, na tarde quente da segunda-feira 25, para assistir à semifinal de tênis em cadeira de rodas da competição mundial Invictus, reputado torneio paralímpico. Não despertariam a menor atenção, não fossem eles o príncipe Harry, de 33 anos, quinto (e meio, já que mais um sobrinho vem aí) na linha de sucessão do trono do Reino Unido, e a americana Meghan Markle, de 36, em sua primeira aparição pública na condição de pombinhos. Meghan é linda, mas não tem um pingo do material usual para mulher de herdeiro real. Além de ter nascido em Los Angeles, é atriz, é divorciada e é mulata (“Minha mãe é 100% preta”, já declarou). E pode Harry namorar a chique plebeia Meghan? Agora que os royals são quase gente como a gente, pode.

O namoro de Harry e Meghan vem sacudindo há meses a legião de adeptos do esporte conhecido como royal watching, que consiste em acompanhar com lupa a vida da realeza. Assunto não falta, ainda mais porque o papel mais conhecido da atriz é o de Rachel Zane, a assistente sexy do escritório de advocacia da série Suits, em que já protagonizou cenas tórridas com pouca roupa. Mas não se percebe no ar nenhuma nuvem especialmente carregada de reprovação. “Os jovens príncipes e duques são carismáticos, brincalhões, uma fonte de alegria para súditos, mídia e empresários — justamente o trio que mantém a monarquia”, diz Francisco Vieira, doutor em história e especialista em realeza britânica. “Eles se humanizaram para se adaptar aos novos tempos.”

Com circunstância – Elizabeth no dia da coroação: 91 anos de majestade, sorrisos protocolares e acenos distantes (V&A Images/VEJA)

Uma atitude assim teria mudado o rumo dos acontecimentos em 1936, quando Edward, o então rei britânico, cismou de se casar com a americana e divorciada Wallis Simpson. A união não foi aceita de jeito nenhum, nem pela família, nem por boa parte do público. Edward teimou e acabou renunciando ao trono para ficar com Wallis (abrindo caminho a George VI, o pai da rainha Elizabeth). O casal, como duque e duquesa de Windsor, passou o resto da existência flanando pela alta sociedade da Europa sem ser levado muito a sério. Hoje, as coisas estão mudadas, mas não se pode esquecer um detalhe: as chances estatísticas de Harry e Meghan virarem rei e rainha são mais baixas do que a popularidade de um certo presidente de um país da América do Sul.

A monarquia tal qual o pai de Elizabeth a desenhou, ao mesmo tempo próxima e distante dos súditos, foi uma tentativa bem-sucedida de recuperar prestígio e popularidade depois do estrago deixado pela longeva rainha Vitoria, que se tornou praticamente reclusa depois da morte do marido e instaurou um código de moralidade ultrarrigo­roso — e antipático, evidentemente. George VI abriu a trilha da reaproximação com os súditos, a qual ganhou impulso com o vento de patriotismo soprado pela II Guerra Mundial. Elizabeth, a jovem rainha que o sucedeu, continuou exibindo vistosos lampejos da vida em família, mas sempre do tipo “nós aqui e eles lá” — a rainha, em seus 91 anos, nunca chegou nem perto de perder a majestade. Seu mundo quase caiu com o torvelinho dramático do casamento de Charles e Diana. Mas o temporal passou, o mundo caminhou para a frente e os royals, sempre habilidosos no exercício de mudar para não mudar, seguiram junto.

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Gente como a gente – Kate no mercado, William com George no colo: a realeza que se esforça para parecer normal (Lee Thompson/The Sun;/Getty Images)

Antes de Harry e Meghan, o irmão bem mais comportado dele, William, e sua igualmente certinha mulher, Kate, vêm dando aula de “vida normal” desde que se casaram, em 2011 — estes, sim, prováveis rei e rainha um dia. Até março deste ano, nem moravam em Londres — viviam perto do trabalho (pouco exigente) de William, piloto de helicóptero de salvamento (em março, ele assumiu suas “funções reais” e o casal foi viver perto do Palácio de Bucking­ham). Antes de ter filhos, Kate fazia compras no supermercado. Os dois usam jeans e tênis nas ocasiões informais. Ela compra roupas em lojas de rede (e as repete). Já foram vistos dando bronca e correndo atrás das crianças, como qualquer casal normal (a não ser pelas roupas do pobre George, sempre de short com suspensórios e sapatinhos de verniz). Até a terceira gravidez de Kate, anunciada no mês passado, seria uma demonstração de família como as outras: desde a própria Elizabeth, mãe de quatro, nenhum membro da realeza teve mais que dois filhos.

Obviamente, de perto, nenhum royal é normal. Todos vivem uma vida de mordomias impensáveis, aí incluídos os reis e príncipes do resto da Europa — embora o brilho deles tenha, ao longo dos anos, empalidecido perto do glamour que envolve a monarquia britânica. É fato conhecido que, em seu mundo repleto de serviçais, Charles, herdeiro do trono e o mais recalcitrante da turma no empenho modernizador, nunca pôs pasta na escova de dentes e nunca se abaixou para amarrar os sapatos. Mas o esforço atual da jovem realeza britânica para se aproximar de uma vida comum é evidente, e por trás dele está um profundo comprometimento com sua “marca global”, que tem a ver menos com dinheiro (embora este seja um fator preponderante — a atração pelos nobres mobiliza quase 45 bilhões de libras em negócios por ano) e mais com a própria sobrevivência da monarquia. O motor da modernização foi Diana, a linda, humana e problemática princesa morta no auge de seus 36 anos, em um desastre de carro, há exatas duas décadas. Mas Diana movia suas peças no meio de um furacão: no seu tempo, todos os filhos de Elizabeth enfrentaram escândalos na vida amorosa.

Outros tempos – Os duques de Windsor: o casamento custou a coroa (Central Press/Getty Images)

Agora, ao contrário, na família real britânica não tem tempo ruim (figurativamente, é claro — afinal, eles vivem em Londres). São abertos e modernos, tanto quanto permitem as limitações do título. “Claro que não podem ser tão iguais assim a todo mundo, ou perdem a razão de existir”, argumenta o historiador Vieira. “Eles têm de tomar cuidado para não errar a dose.” Nas beiradas da normalidade de William e Harry, a prima Zara, a neta mais velha de Elizabeth, é outra que dispensa maiores rapapés quando aparece em público com o marido, Mike Tindall (ex-jogador de rúgbi de porte avantajado e perene incompatibilidade com os ternos e casacas das ocasiões formais), e a filhinha, Mia.

Os dois filhos de Diana, inclusive — seguindo uma trilha aberta pela mãe, que foi à TV expor seus dramas —, promoveram nos últimos meses um raro desvio no discreto mundo da nobreza que sorri, dá adeusinho e aperta mãos: eles soltaram a voz. Tanto William quanto Harry concederam entrevistas, juntos e individualmente, em que falaram sobre Diana e, até certo ponto, sobre sua intimidade. Harry, mais à vontade, revelou os traumas que adquiriu após a tragédia familiar e, em uma ocasião, deixou escapar: “Há alguém na família que queira ser rei ou rainha? Acho que não. Mas vamos cumprir nosso dever”. Os royal watchers agradecem.

Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº 2550

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